© JAGADEESH NV (EFE) Recipiente com dose da vacina indiana Covaxin em Bangalore, Índia, no dia 14 de junho.
A suspeita de corrupção na compra de vacinas de fabricação indiana contra covid-19 pelo Ministério da Saúde colocou o Governo de Jair Bolsonaro contra a parede. Caso confirmado, o alegado favorecimento para a compra do imunizante indiano Covaxin carimbaria na caótica gestão federal da pandemia de coronavírus a marca inequívoca do ilícito. “Para tristeza de alguns poucos, o Governo está completando dois anos e meio sem uma acusação de corrupção”, defendeu-se nesta quinta-feira o presidente durante agenda pública no Rio Grande do Norte. “Não adianta inventar vacina, porque não recebemos uma dose sequer dessa que entrou na ordem do dia da imprensa”, completou, em referência à compra polêmica da Covaxin. Leia abaixo o que já se sabeo sobre o caso, que sequestrou a agenda da CPI da Pandemia —nesta sexta-feira, dois dos pivôs da história prestam depoimento aos senadores.
Ponto de partida
A desconfiança nasceu no Ministério Público Federal (MPF). Fechado em 25 de fevereiro, o contratado para a compra das 20 milhões de doses da Covaxin foi o mais célere entre os seis imunizantes negociados pelo Ministério da Saúde, e também o mais caro —15 dólares por unidade, num total de 1,6 bilhão de reais; a suspeita de que teria sido comprada com superfaturamento de 1.000% já foi afastada, já que esse foi o preço estipulado pela empresa para exportação. A famigerada vacina da Pfizer, por exemplo, custou 10 dólares por unidade, e o Governo levou 330 dias para fechá-lo, enquanto os trâmites para adquirir as doses da Covaxin não chegaram a 100 dias, de acordo com levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) enviado à CPI da Pandemia. A velocidade teria sido fruto de “pressão atípica”, segundo disse ao MPF o servidor Luís Ricardo Miranda, então coordenador de Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.
O Ministério Público investiga o caso desde que o contrato foi firmado, em fevereiro, e passou tratá-lo no âmbito criminal neste mês. No fim de abril, o jornal Folha de S.Paulo já tinha revelado as suspeitas do MPF sobre favorecimento à empresa Precisa Medicamentos, que representa no Brasil o laboratório Bharat Biotech, responsável pela Covaxin. O fato de haver um intermediário na negociação, ao contrário do que ocorreu com todos os outros fabricantes, é outro motivo de suspeita para os procuradores. Também não ajuda aos investigados o histórico da Global Gestão em Saúde, sócia-controladora da Precisa, investigada por ter assinado um outro contrato para fornecer medicamentos de alto custo ao Governo, de 20 milhões de reais, e não ter entregue os produtos. Em meio à negociação da Covaxin, a empresa também conseguiu um aditamento (um acréscimo) em um contrato para a venda de preservativos feminismos à pasta (passou de 15,7 milhões de reais para 31,5 milhões de reais), segundo reportagem da CNN. Presidente da Global, Francisco Emerson Maximiano é um dos convocados para depor à CPI nos próximos dias.
Depoimento de servidor e encontro com Bolsonaro
O caso esquentou consideravelmente na semana passada, quando vazou o depoimento em que o servidor Luís Ricardo Miranda denuncia à procuradora Luciana Loureiro as pressões pela vacina Covaxin no Ministério. E a temperatura aumentou ainda mais nesta quarta-feira, quando o deputado Luis Miranda (DEM-DF), irmão do servidor que denunciou o caso ao MPF, revelou ter alertado Bolsonaro sobre a questão por meio de um assessor do presidente. “Avise ao PR que está rolando um esquema de corrupção pesado na aquisição das vacinas dentro do Min. da Saúde. Tenho as provas e as testemunhas”, escreveu Miranda ao assessor, segundo uma das mensagens que vieram a público. Os irmãos Miranda também dizem te se encontrado pessoalmente com o presidente, que teria prometido investigar as denúncias.
DIA D NA CPI
Os dois irmãos são os protagonistas aguardados pela CPI nesta sexta-feira. “Nem eu e nem o meu irmão queríamos essa exposição. Denunciamos a portas fechadas ao PR @jairbolsonaro e nunca divulgamos a conversa! Vazaram o depoimento do meu irmão dado ao MPF e a CPI nos convidou. Defender a coragem do meu irmão e a verdade é a minha missão. Não tem acordo!”, escreveu o deputado Luís Miranda em seu perfil no Twitter nesta quinta-feira.
O surgimento do nome do presidente no caso levou o Governo a responder de forma truculenta. “Deputado Luís Miranda, Deus está vendo. Mas o senhor não vai se entender só com Deus, não, mas também com a gente”, ameaçou o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), durante pronunciamento à imprensa, transmitido ao vivo, no qual não respondeu a perguntas. Os governistas vêm tentando minimizar o caso, mas o cancelamento da compra é considerado.
Miranda reagiu no Twitter: “Diga a verdade PR @jairbolsonaro, e que de fato estivemos com o Senhor dia 20/03 e denunciamos uma irregularidade na aquisição da Covaxin e que o Senhor deu o devido tratamento ao caso, conforme informou que o DG [diretor-geral] da PF [Polícia Federal] receberia os documentos ainda no dia 20/03″. “Cobramos no dia 20/03, 22/03, 23/03 e 24/03, e tenho certeza que tomou a melhor decisão para travar, tanto que até hoje não efetuou nenhum negócio. Então porque me atacar com fake news através do @onyxlorenzoni???? Só tentei combater uma possível corrupção. Deus sabe da verdade!”, completa a mensagem.
O deputado Miranda, integrante da base bolsonarista, fez carreira no YouTube dando dicas de empreendedorismo e defesa do modelo tributário norte-americano. Foi alvo de várias denúncias de calote, que foram tema de uma reportagem do programa Fantástico em 2019. Ele nega ter cometido irregularidades. Já seu irmão que depôs no Ministério Público Federal é servidor público do Ministério da Saúde desde 2011 e está na divisão de importações desde 2018.
Sem entregas
O Brasil não recebeu uma única dose de Covaxin, nem desembolsou qualquer centavo do 1,6 bilhão de reais contratado. Mas empenhou o dinheiro ―no jargão do orçamento, quer dizer que já reservou a verba para pagamento. E isso, segundo a procuradora Luciana Loureiro, seria o bastante para configurar dano à saúde pública. “Enquanto houver a nota de empenho, enquanto ela estiver válida, o recurso está reservado para isso. Certamente o prejuízo à saúde pública já está havendo. As doses já eram para ter chegado, os 20 milhões de doses já deveriam estar sendo aplicados. Prejuízo já houve”, disse a procuradora à Folha de S.Paulo nesta quinta-feira. Além disso, a simples promessa de favorecimento também serviria para configurar crime, mesmo sem qualquer pagamento efetuado. Na entrevista, Loureiro sugere que o melhor seria cancelar o contrato, tendo em vista inclusive que os prazos acordados para a entrega do produto não foram cumpridos ―o lote completo deveria ter chegado até 6 de maio.
A Precisa Medicamentos reagiu à possibilidade de cancelamento por meio de seus advogados. Em entrevista à CNN Brasil, os representantes do empresa disseram que o cancelamento “causaria perplexidade aos milhões de brasileiros e à comunidade científica que esperam por uma vacina”. A ameaça de quebra do contrato é apenas mais um capítulo do expresso e confuso processo de compra da Covaxin. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) rejeitou em 31 de março o pedido de importação de doses do Ministério da Saúde, por falta da documentação necessária ―o Governo já havia firmado contrato um mês antes, um procedimento bem diferente do dispensado à vacina da Pfizer, no qual a aprovação pela agência foi tratada como condição para a compra.
A Anvisa só aprovaria o pedido de importação da Covaxin no dia 4 de junho, e com ressalvas, por falta de dados sobre a efetividade do imunizante. Assim como a russa Sputnik V, a Covaxin, se chegar ao Brasil, não deve ser utilizadas por indivíduos com hipersensibilidade a qualquer um dos componentes da fórmula, gestantes, lactantes, menores de 18, mulheres em idade fértil que querem engravidar, enfermidades graves ou não controladas e antecedentes de anafilaxia. Tampouco pode ser aplicada em que é portador de HIV, hepatite B ou C, entre outras restrições.