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Por Daniel Camargos, de Peixoto de Azevedo (MT), Repórter Brasil - Raoni está cansado. Mesmo um ano após ter vencido a covid, o líder indígena, de 91 anos, ainda sente dores no corpo e dificuldade para respirar, como contou em entrevista exclusiva à Repórter Brasil, na sede do seu instituto em Peixoto Azevedo (MT). O vírus o infectou semanas após a morte da esposa, Bekywiká Metukitire, em junho de 2020. Desde então, ele vive o luto e segue recluso em sua aldeia na Terra Indígena Capoto Jarina, às margens do rio Xingu, no norte do Mato Grosso.

O luto para os Kayapó é um ritual longo. Impõe solidão e silêncio. Durante o período, Raoni deixou de usar o seu característico cocar amarelo e preto, parou de pintar o corpo e teve os cabelos cortados por um dos anciãos de seu povo. “É preciso ficar anti-social mesmo”, resume o seu neto, Beptuk Metuktire, de 26 anos, que acompanha a entrevista. O confinamento só acaba quando o ancião que cortou o seu cabelo — decretando o início do luto — entende que é o momento de retomar à normalidade. “Quando isso acontecer, a família vai pintar o corpo dele no final da tarde, vai colocar o cocar e ele vai passar a falar alto. A gritar”, detalha o neto.

Durante a entrevista, o cacique só elevou o tom de voz ao ser perguntado sobre as críticas que o presidente Jair Bolsonaro fez a ele, quando chegou a chamá-lo de “peça de manobra de governos estrangeiros” em um discurso na ONU. “Bolsonaro está fazendo coisa errada e eu não estou gostando. Ele quer a extinção dos povos indígenas e também pensa em destruir vocês, homens brancos”, afirma, com o dedo em riste.

Raoni se posicionou também em relação às eleições de 2022 e deixou clara sua preferência. “Se o Lula assumir, eu estarei lá com ele e vamos começar de novo a trabalhar juntos. Para que todos tenham paz”. Por mais que a idade, a saudade da esposa, as sequelas da covid e o governo Bolsonaro abalem um dos líderes indígenas mais importantes do mundo, Raoni segue ambicioso e cheio de planos para quando colocar seu cocar, pintar o corpo e encerrar o luto. Entre eles, está ir a Brasília pressionar Alexandre de Moraes e outros ministros do STF a vetarem o Marco Temporal. Outro combate no horizonte é impedir que o projeto da Ferrogrão saia do papel – a ferrovia prevê um terminal de cargas em Matupá (MT), o que levará a soja a pressionar ainda mais o Parque Indígena do Xingu e a Terra Indígena do Raoni, a Capoto Jarina.

A trajetória de Raoni como figura pública vem desde o final dos anos 50, quando os irmãos Villas-Bôas fizeram contato com seu povo, e ele passou a ser o principal interlocutor dos Kayapó com o restante do mundo. Foi fundamental para demarcação de terras, para a defesa dos direitos indígenas na Assembleia Constituinte e para a preservação da floresta Amazônica.  

As estantes do Instituto Raoni abrigam diplomas do cacique, além de fotos com reis, papas, presidentes e ícones pops, como o cantor Sting, com quem fez uma turnê por quase 20 países no final da década de 80. A instituição fica em uma avenida sem calçamento em Peixoto de Azevedo, uma cidade garimpeira no norte do Mato Grosso, às margens da BR-163 – rodovia sempre atulhada de caminhões gigantes carregados de soja e de outdoors de apoio a Bolsonaro.

O ambiente bolsonarista da região não intimida o cacique. “Todos temos que apoiar Lula para que ele assuma e tenhamos tranquilidade”, afirma, sempre terminando as frases com a expressão “é isso”, ou  “tãm ne jã” em Kaiapó, como explicou o neto Beptuk, responsável pela tradução junto com o sobrinho Puiu Txukahamae.

Enquanto o luto não acaba, o cacique foi até Peixoto de Azevedo para fazer exames pulmonares. E aproveitou para comprar um notebook. Raoni quer o computador para assistir aos vídeos das festas nas aldeias.

Acompanhado de dois netos, ele foi até uma loja de eletrodomésticos na cidade vizinha de Matupá, mas assustado com o preço de quase R$ 5 mil, deixou a loja com a cara fechada. Depois, decidiu ir em outra loja, no centro de Peixoto de Azevedo, onde pediu desconto e negociou com o gerente. Do lado de fora, vários estabelecimentos anunciam a compra de ouro. Dentro da loja, os vendedores pedem selfies com o cacique.

Enquanto seus netos testam o notebook, ele senta em uma confortável cadeira massageadora em exposição na loja. Aos 91 anos, Raoni Metuktire está cansado. Descalça os chinelos, cruza as pernas e descansa. Parece guardar energia para as várias batalhas que ainda enfrentará.  

A Ferrogrão (ferrovia planejada pelo governo federal para levar a soja do Mato Grosso para o porto do rio Tapajós, no Pará) pode impactar os povos indígenas e o meio ambiente. O terminal de cargas em Matupá vai aumentar muito o volume de caminhões de soja na rodovia que corta o Território Indígena do Xingu e a Capoto Jarina, onde o senhor vive. O que acha desse projeto?

Eu vou te falar. Vocês homens brancos estão destruindo tudo e eu não estou gostando. Eu não aceito. Não será bom para nós povos indígenas Mẽbêngôkre (Kayapó). Nós sempre defendemos manter a floresta para que ela permita nossa sobrevivência. Essa terra é nossa desde nossos antepassados, onde nossos avós andaram. Tinha mata preservada. E hoje, vocês brancos, estão destruindo tudo. Os animais, os peixes, tudo! Todas as coisas vocês estão matando, e eu não estou gostando. É isso!

O senhor lutou muito contra a construção de Belo Monte, mas depois de anos a usina foi construída. Como vai ser a luta agora contra a ferrovia, a Ferrogrão?

Esse projeto não tem que existir. Vou pedir para o Instituto Raoni escrever uma carta repudiando esse projeto. E que façamos uma mobilização grande para lutar contra a Ferrogrão. Para que nossos netos estejam em paz nessa terra.

Queria que o senhor comentasse sobre o adiamento por tempo indeterminado da decisão do Marco Temporal pelo STF com o pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

Eu quero que você entenda que esse Marco Temporal não pode existir. Eu quero que você me entenda, Alexandre de Moraes. É o Raoni que está falando com você. Depois  que meu luto passar, eu estarei aí para me manifestar contra. Você não pode aprovar o Marco Temporal para que todos nós tenhamos felicidade.

Viemos de carro pelo Norte de Rondônia, Sul do Amazonas, e descemos desde Itaituba, passando por Novo Progresso até chegar aqui no Mato Grosso. Vimos pelo caminho regiões que foram muito destruídas pelo fogo e pelo desmatamento. Vimos também muito garimpo. O que fazer para parar essa destruição?

Eu nunca vou aceitar isso. Essas coisas que tiram ouro da terra e que destroem a natureza para vender madeira eu não aceito. Eu não concordo com o garimpo. A destruição da natureza terá consequência para todos.

O presidente Jair Bolsonaro é pró-garimpo e quer mudar a legislação para permitir que o homem branco garimpe a terra dos indígenas. Ele também quer plantar soja em territórios dos povos originários. O que o senhor pensa do presidente e dessas ideias dele?

Bolsonaro está fazendo a coisa errada. Ele quer a extinção de nós, povos indígenas. Ele também pensa em destruir vocês (homens brancos). Isso que ele quer. Ele sempre falou que não vai ajudar ninguém. Nem branco e nem indígena. Eu não aceito.

Bolsonaro já te atacou diversas vezes; disse inclusive que o senhor atua obedecendo interesses estrangeiros e de ONGs. Qual a sua resposta?

Eu não estou gostando de Bolsonaro falar mal de mim. Eu  não gosto das palavras dele.

Bolsonaro disse que não iria demarcar nenhuma terra indígena. E de fato não demarcou. No governo de Dilma e Lula as demarcações foram poucas: 21 na gestão da Dilma e 87 na de Lula. Caso o Lula seja eleito ano que vem, o que você espera do governo dele? Ele pode ser melhor para os indígenas

Bolsonaro tinha falado que ia destruir tudo. Ele sempre falou isso. Eu fiquei escutando e não gostei. As pessoas têm que tirar logo o Bolsonaro para que outro entre no lugar dele. E essa pessoa tem que estar ali para defender o direito de todo mundo e também defender nossos territórios indígenas. Tem uma terra que chama Kapotnhinore  que daqui uns anos eu mesmo estarei lá para demarcar, que eu vou focar para demarcar, pois foi onde meus pais nasceram.

 Que outro presidente o senhor quer?

Eu pensei em Lula. Se o Lula assumir eu estarei lá com ele. Nós vamos começar a trabalhar juntos de novo para que as coisas fiquem certas e todos tenham paz. Todos temos que apoiar Lula para que ele assuma esse cargo para que possamos ter tranquilidade. É isso.    

Quando eu sair do luto, estarei à disposição para ir para Europa. Tinha um convite de um presidente para mim (do francês Emmanuel Macron) e eu falei que ia esperar um pouco, pois tenho que me recuperar e depois irei pessoalmente revê-lo.

Quero continuar com esse trabalho de proteger minha área. Ele já falou que vai me ajudar. Por isso, me convidou para ir lá e a gente começar. Mas eu pedi para ele me esperar. No ano que vem já vou poder. Eu vou começar com Kapotnhinore para demarcar, tenho que demarcar essa terra para ampliar nossa terra indígena porque a população está aumentando.

Qual recado o senhor quer mandar para os brasileiros?

Eu penso que todos vocês poderiam entender a minha preocupação. Que essa preocupação se transforme em uma aproximação entre nós para que possamos ter amizade e esperar o momento das nossas doenças, [da nossa ida] para outro mundo. A morte é um caminho só e todos vamos passar por esse caminho. Por isso, temos que aproveitar o tempo e termos paz. Eu nunca vou aceitar as pessoas que vivem em conflito.

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