Dona de construtora registrada na Paraíba não sabe detalhes da obra que fará para a Secretaria Especial da Cultura no Centro Técnico Audiovisual (CTAv), no Rio de Janeiro, prédio com risco de incêndio e desabamento
BRASÍLIA — O secretário especial da Cultura, Mario Frias,
contratou sem licitação, por R$ 3,6 milhões, uma empresa sem funcionários e
sediada em uma caixa postal dentro de um escritório virtual. Aberta em maio de
2019, a Construtora Imperial Eireli, da Paraíba, deverá prestar serviços de
conservação e manutenção do Centro Técnico Audiovisual (CTAv), um edifício da
União que reúne relíquias do cinema nacional em Benfica, na zona norte da
cidade do Rio de Janeiro. A empreiteira virtual pertence a Danielle Nunes de
Araújo — que, no início do ano passado, se inscreveu no programa de auxílio
emergencial do governo e recebeu o benefício por oito meses seguidos.
Em agosto, um estudo técnico encomendado pelo próprio CTAv
apontou risco de incêndio e desabamento de parte da estrutura. Num dos trechos,
o documento ressalta que há “desaprumo de telhas na fachada frontal”, que pode
cair a qualquer momento. Funcionários chegaram a contar que tinha até rato
caindo do teto.
Em novembro, Mario Frias assinou a contratação da Construtora
Imperial, por meio de uma portaria de dispensa de licitação, para resolver o
problema. A empresa está localizada a 2.400 km do Rio de Janeiro e tem como
endereço um escritório virtual especializado em fazer “gestão de
correspondências” para dezenas de firmas. Por telefone, Danielle Nunes de
Araújo confirmou que costuma realizar reuniões no local para tratar de
contratos. No entanto, o dono do local, Alcir Lima, diz que não se lembra de
ter recebido presencialmente a dona ou qualquer funcionário da Imperial.
De acordo com a base de dados do Ministério da Economia, a
Construtora Imperial não registrou funcionário algum em sua última declaração
da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), entregue em 2019, ano em que
foi fundada. Segundo a pasta, as informações devem ser atualizadas anualmente.
A Construtora Imperial nunca prestou serviços para o governo
federal. Além disso, a empresa não tem um site ou qualquer meio eletrônico que
detalhe os serviços que ela presta.
Entre parentes e pessoas próximas, Danielle não é conhecida
como empresária do ramo da construção, mas sim como dona de casa de perfil
discreto e que recentemente estava passando por dificuldades financeiras. No
início do ano passado, ela se inscreveu no programa de auxílio emergencial do
governo Federal e recebeu o benefício por oito meses seguidos — R$ 3,9 mil no
total.
Ao ser questionada pelo GLOBO, Danielle não soube dar
detalhes dos serviços para o qual foi contratada. Disse apenas que era para
"demolir e reconstruir um prédio lá no Rio". O edital de contratação
da Secretaria Especial de Cultura, no entanto, não trata de qualquer
"demolição" do prédio. O documento destaca que os recursos empenhados
na obra servirão para a realização de “serviços técnicos especializados na área
de engenharia para manutenção preventiva, corretiva, conservação predial e
arquitetônica”.
O contrato de R$ 3,6 milhões com o governo Federal foi o
maior negócio já fechado pela Construtora Imperial. Antes, havia prestado
apenas pequenos serviços para prefeituras da Paraíba. Com Sertãozinho, por
exemplo, fechou um contrato de R$154 mil. Com Guarapari da Paraíba, outro
negócio foi firmado, por R$ 190 mil. Ambos na área de obras esportivas.
Procurada por e-mail e por telefone ao longo dos últimos
dias, a secretaria de Cultura não respondeu aos questionamentos da reportagem
nem disse por que uma empresa que não tem sede nem funcionários foi contratada
sem licitação. O órgão também não respondeu quais os critérios foram adotados
para a escolha da construtora e não esclareceu se fez vistoria prévia na
empresa.
Depois da pubicação da reportagem, no fim da noite, em nota
divulgada nas redes socias, a secretaria disse que o contrato emergencial do
CTAv obedeceu aos requisitos legais, e foi escolhida a proposta de menor preço.
"A empresa em questão possui inúmeros contratos
anteriores com a administração pública. A área técnica do Ministério do Turismo
observou todas as exigências legais, estando em plena execução das obras",
afirma a pasta.
A secretaria diz ainda que a contratação não foi realizada
pelo secretário especial da Cultura. O Diário Oficial da União do dia 12 de
novembro publica a dispensa de licitação, ratificada por Mário Luis Frias.
Especialistas em direito administrativo ouvidos pelo GLOBO
destacam que, antes de formalizar uma contratação, é obrigação da União checar
se a empresa tem capacidade técnica reconhecida. E isso inclui, segundo a
legislação federal, checar se a empresa tem funcionários especializados, além
de capacidade técnica e máquinas, por exemplo. Quando se trata de dispensa de
licitação, essa comprovação se torna ainda mais importante, explica Cecilia Mello, advogada, membro efetivo da Comissão de
Direito Penal da OAB-SP e desembargadora aposentada do Tribunal Regional
Federal da 3ª Região (TRF-3).
Em qualquer
contratação com dispensa de licitação em razão de emergência ou calamidade
pública, há uma circunstância emergencial e que demanda pronto e adequado
atendimento. Há uma situação de risco. Disso decorre, por raciocínio lógico,
que somente uma empresa que tenha expertise para enfrentar aquela situação pode
ser contratada. Afora os demais pressupostos legais, relacionados a preço,
prazo, etc., a especialidade da empresa e a sua estrutura para o atendimento da
urgência devem ser comprovados —
completa Cecilia.
Valdir Simão, ex-ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão
e da Controladoria Geral da União, também pontua que a verificação da
capacidade técnica e financeira da empresa é uma etapa "essencial",
antes da contratação.
Tem que ver se ela tem
capacidade de executar aquela obra. Tem
que ser verificado, feita a habilitação jurídica, a habilitação técnica, a
habilitação econômica e financeira e outros requisitos. Há uma fase importante que é a de atestar
capacidade da empresa — destaca.
Criado em 1985 a partir de uma parceria entre a antiga
Embrafilme e o National Film Board, do Canadá, o CTAv é responsável por um
acervo com mais de seis mil títulos. O órgão também fornece apoio à produção
cinematográfica nacional por meio de empréstimos de equipamentos e estúdios, a
custo zero. Nomes como os cineastas Sérgio Sanz (1941-2019) e Gustavo Dahl
(1938 - 2011) já passaram pela direção da instituição.
Os bens históricos incluem 15 mil latas de filme, 20 mil
negativos fotográficos e cerca de 1,5 mil cartazes. Entre as relíquias, há
parte da coleção do diretor pioneiro Humberto Mauro (1897-1993) e películas
originais de “Limite” (1931), obra-prima de Mário Peixoto, e “O que foi o
carnaval de 1920” (1920), de Alberto Botelho.