Por Filipe Matoso, g1 — Brasília
Áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM)
publicados neste domingo (17) pela jornalista Míriam Leitão, colunista do
jornal "O Globo", mostram relatos de tortura durante o período da
ditadura militar (1964-1985).
Ao todo, são mais de 10 mil horas de gravações, e os áudios
foram analisados pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
Nos áudios, por exemplo, um general defende a apuração do
caso de uma uma grávida de 3 meses que sofreu aborto após choques elétricos na
genitália; e um ministro denuncia uma confissão de roubo a banco obtida a marteladas
– o suspeito estava preso à época do crime (leia detalhes mais abaixo).
O g1 tentou contato com as assessorias do Exército e do
Ministério da Defesa, mas não conseguiu até a última atualização desta
reportagem.
Neste domingo, o presidente da Comissão de Direitos Humanos
(CDH) do Senado, Humberto Costa (PT-PE), informou que solicitará acesso aos
áudios, para tomada de possíveis providências.
"A exposição das gravações em que ministros do STM
admitem tortura é uma assunção cabal do Estado sobre tudo o que cometeu durante
o regime militar", declarou o petista em uma rede social.
Em entrevista a "O Globo", Carlos Fico explicou
que, em 2006, o advogado Fernando Fernandes pediu ao STM acesso às gravações,
mas não conseguiu e, então, acionou o Supremo Tribunal Federal, que determinou
a liberação do conteúdo. O STM, porém, acrescentou Fico a "O Globo",
não obedeceu a decisão e, em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso
irrestrito aos autos, decisão posteriormente referendada pelo plenário.
Por telefone, o professor informou ao g1 que desde 2018
analisa os áudios e já está na metade do processo, o que abrange o período
entre 1975 e 1979. Carlos Fico acrescentou ainda que, embora algumas pessoas
tentem negar que houve tortura na ditadura, cabe aos historiadores apresentar a
história como ela é.
"Quando a gente vive tempos traumáticos, algumas pessoas
tendem a criar memórias que as apaziguem com o passado. Outra coisa é a
história. Não há dúvida que houve tortura, isso é óbvio. É até um pouco
reiterativo, repetitivo dizer que houve tortura. Houve. Ponto final. Claro que
houve. Outra coisa é a memória que algumas pessoas constroem, de negação da
tortura", disse o historiador.
Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade divulgou
um relatório no qual responsabilizou 377 pessoas por crimes cometidos durante a
ditadura, entre os quais tortura e assassinatos. O documento também apontou 434
mortos e desaparecidos na ditadura; e 230 locais de violações de direitos
humanos.
Em manifestação divulgada na ocasião, o Clube Militar chamou
o relatório de "coleção" de "calúnias" e de
"absurdo".
General Rodrigo Octávio relata, durante sessão do STM no dia
24 de junho de 1977
Choque elétrico levou
mulher a sofrer aborto
Em um trecho revelado pelo jornal "O Globo", o
general Rodrigo Octávio afirma em 24 de junho de 1977, durante o julgamento da
Apelação 41.048 que "fato mais grave" suscita a análise da apelação.
Ao descrever o assunto a ser julgado, o militar revela que "alguns
réus" apresentaram "acusações referentes a tortura e sevícias das
mais requintadas".
Descreve ainda o general que, conforme esses réus, uma mulher
grávida de 3 meses sofreu aborto após "castigos físicos" no Doi-Codi,
órgão militar da ditadura. Relata também que, conforme o marido dessa mulher,
ela sofreu "choques elétricos em seu aparelho genital".
"Na defesa das salvaguardas dos direitos e garantias
individuais, expresso no artigo 153, parágrafo 14 da emenda constitucional 69,
como consequência não só de nossa evolução política, lastreada em secular
vocação democrática e formação humanística, espírito cristão, com o compromisso
assumido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovado em resolução
da terceira sessão ordinária da Assembleia das Nações Unidas, tais acusações, a
meu ver, devem ser devidamente apuradas através de competente inquérito,
determinado com base no inciso 21 do artigo 40, da lei judiciária militar,
Decreto Lei 1.003 de 69", afirma o general.
"É preciso que se evidencie de maneira clara e
insofismável que o governo, através das Forças Armadas e dos órgãos de segurança,
não pode responder pelo abuso e a ignorância e a maldade de irresponsáveis que
usam torturas e sevícias para obtenção de pretensas provas comprometedoras na
fase investigatória, pensando, em sua limitação cerebral, que estão bem
servindo à estrutura política e jurídica regente, quando na realidade concorrem
apenas na prática desumana, ilegal em denegrir a revolução retratando a sua
configuração jurídica do Estado de Direito e abalando a confiança nacional pelo
crime de terror e insegurança, criados na consecução honesta e urgente dos
objetivos revolucionários", acrescenta.
'Começo a acreditar nessas torturas', diz ministro do STM
Waldemar Costa em 1976
'Confesso que começo a acreditar nessas torturas'
Em um trecho dos áudios revelados neste domingo pelo jornal
"O Globo", o ministro togado Waldemar Torres da Costa afirma em 13 de
outubro de 1976 durante o julgamento da Apelação 41.229: "Começo a pedir a
atenção dos meus eminentes pares para as apurações que são realizadas por
oficiais das Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e às vezes
impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu
confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente. "
'Covardes' não podem atingir integridade física de presos, diz almirante em 1976
'Prato para os inimigos do regime'
Seis dias depois, em 19 de outubro de 1976, o almirante Julio
de Sá Bierrenbach afirma durante o julgamento da apelação 41.264: "Quando
aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato
para os inimigos do regime e para a oposição ao governo. Imediatamente, as
agências telegráficas e os correspondentes os jornais estrangeiros, com a
liberdade que aqui lhes é assegurada, disseminam a notícia e a imprensa
internacional em poucas horas publicam os atos de crueldade e desumanidade que
se passam no Brasil, generalizando e dando a entender que constituímos uma
nação de selvagens".
E acrescenta o almirante: "Não podemos admitir é que o
homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos
covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado."
Preso relatou ter sido agredido com marteladas, diz ministro
do STM em 1976
'Marteladas'
Antes desses julgamentos, ainda em 15 de junho de 1976, o
ministro togado Amarílio Lopes Salgado já havia dito durante o julgamento da
"É que ele [suspeito] alega que [...] esse [outro
assalto] ele não podia [ter cometido] porque estava preso. 'Eu estou preso,
estava preso na Ilha Grande'. Faz uma diligência e vem isso aí. Vou dar uma
cópia para o procurador-geral porque esse moço apanhou um bocado, baixou
hospital e citou o nome das duas pessoas que martelaram ele. [...] Eles podem
negar, mas que os nomes dos dois estão aí, estão. É fulano e beltrano.
Martelaram esse moço, daí a confissão dele. Em juízo, ele confessa que não
podia: 'Eu estava lá na Ilha Grande', no dia 26. 'No dia 30, eu fugi e assaltei
o banco tal no dia 31 e no dia 4 assaltei outro banco, mas no dia 26, não'. As
declarações dele são longas, acho que no acórdão devia ser feito menção a
isso."
General Augusto Fragoso fala em 'constrangimento' após
acusações contra o Exército
'Grande constrangimento'
Cerca de dois anos depois, em 9 de junho 1978, o general
Augusto Fragoso pede a palavra durante o julgamento da apelação 41.593 e diz
que, como único representante do Exército na ocasião, sentiu "grande
constrangimento" ao saber de acusações que, para ele, "não foram
apuradas devidamente".
" Eu, nesses 50 e tantos anos de serviço, vivendo crises
militares de 30, 32 e 35, nunca vi, nunca ouvi, acusações desse jaez feitas a
órgãos do Exército. Acho que nosso Exército, seguindo exemplo das forças irmãs,
devia rapidamente ser recolher aos afazeres profissionais", afirmou.
'Não podemos receber qualquer suspeita de maus-tratos', diz
brigadeiro em 1977
Subversão
Durante a sessão de 19 de outubro de 1977, o brigadeiro
Deoclécio Lima de Siqueira afirma que um ministro disse que o tribunal não
poderia receber "indiscriminadamente toda e qualquer suspeita de
sevícia", sob pena, segundo esse ministro, de o STM comprometer "aqueles
que, de boa fé, com idealismo e patriotismo, se contrapõem à subversão".
Exame de corpo e delito
Na sessão de 15 de fevereiro de 1978, o Brigadeiro Faber
Cintra afirma durante o julgamento da Apelação 41.648, que, se as lesões
tivessem acontecido, "seriam facilmente constatadas" por meio de
exame de corpo e delito.
"As lesões sofridas, caso acontecessem, seriam
facilmente constatadas através do exame de corpo e delito ou mesmo laudo médico
particular, posto que nenhum dos acusados foi mantido preso por prazo superior
ao previsto em lei. As alegações dos acusados em juízo, no sentido de que
sofreram coações morais e físicas, não podem ser consideradas, pois desprovidas
de qualquer elemento probatório por mais simplório que fosse um laudo médico
particular que à época constatasse qualquer lesão, mesmo superficial do
acusado. "
'Eles apanham mesmo'
Em um dos áudios publicados pelo jornal "O Globo"
neste domingo, uma pessoa não identificada se apresenta como revisora da
Apelação 41.027, julgada em 16 de junho de 1976. Na gravação, essa pessoa diz
que um investigado que "não tinha nada a ver com história" foi
indiciado.
Diz, então, que "muitas vezes" o inquérito policial
é desacreditado porque as pessoas "apanham mesmo" durante as
investigações.
"Eu sou revisor de um processo que aparece que eram
quatro indiciados no inquérito, todos eles confessaram direitinho na polícia
que tinham tomado parte. Uns acusaram os outros, mas na ocasião do sumário
ficou provado que um deles não tinha nada a ver com a história. Esse trabalhava
direitinho. Por que razão ele havia confessado? E ele disse: 'Ou a gente
confessa ou entra no pau'. E é o que está acontecendo. Entrou dessa vez, e
muita gente tem entrado, por isso que muitas vezes a gente acha que o inquérito
na polícia não tem valor, por causa desses casos, desses casos. Eles apanham
mesmo. Por isso, quando vejo um inquérito na polícia eu fico logo com um pé
atrás."
‘Há a prova documental da tortura’, disse advogado a Superior
Tribunal Militar em 1977
Advogado
Além dos áudios de integrantes do STM, "O Globo"
também publicou o trecho em que o advogado Sobral Pinto afirma, em 20 de junho
de 1977, durante o julgamento da Apelação 41.301, que há casos de tortura.
"Os senhores ministros não acreditam na tortura. É uma
pena que não possam acompanhar os processos como um advogado da minha categoria
acompanha para ver como essa tortura se realiza permanentemente. E nesse
processo, senhores juízes há prova documental da tortura que sofreu Marco
Antonio. Há um laudo firmado por médicos militares atestando essa tortura. O
ilustre eminente advogado de Marco Antonio, doutor Mario Simas, vai mostrar aos
senhores ministros esse documento", afirma Sobral Pinto.
E mais:Marco Antonio Tavares Coelho, informou "O Globo", havia sido condenado a cinco anos .