Fábio Mozart: Escritor, dramaturgo, jornalista e radialista brasileiro
As cartas não mentem
jamais. A internet, entretanto, engana mais do que cachorro de fateira, como
atestava minha vó Joaninha. Claro que ela não conheceu a grande rede de
computadores, mas foi íntima das fateiras, mulheres especialistas na arte de
tratar e limpar as vísceras dos animais abatidos. Havia acordado às quatro da
manhã, hora em que o silêncio e a cabeça fresca proporcionam mais clareza das
ideias. Aproveito para escrever e ler as comunicações dos seguidores, nessa
hora em que, segundo o oráculo africano Ifá, o orixá Orumilá perambula pelas
quebradas do planeta, ele que é a divindade da profecia e da adivinhação. Lendo
as mensagens, veio o choque: morreu um amigo de infância, uma criatura que
andou comigo na igreja, na camaradagem da escola, no apego pela arte musical e
no afeiçoamento de companheiro pela vida afora. Ele, músico completo, maestro,
violonista e pianista, dedicou-se a louvar seu Deus na Igreja. Eu, tocador de
violão medíocre de mesa de bar, incrédulo, estilos de vida completamente
dissemelhantes, mas estivemos juntos sempre, na indubitabilidade desse
companheirismo. “O homem que tem muitos amigos pode congratular-se, mas há
amigos mais chegados do que um irmão”, proverbiou o rei Salomão.
Constatado o fato
consumado, mais ou menos recomposto da emoção, passei a registrar as
condolências em comunicado aos mais próximos. Antes de publicar a mensagem,
salvou-me da rata o velho senso de repórter, a mania de ouvir mais de uma
fonte. Liguei para um amigo comum e escapei da dança dos erros. Nosso cordial
colega não havia sucumbido, apesar de travar luta renhida com doença crônica.
Chorei de novo, por necessidade urgente de desafogar o impacto da primeira
notícia, e refiz o aviso eletrônico. Cheguei a ficar tão espontâneo e exultante
que acabei redigindo uma peça de certa risibilidade, vazada nos seguintes
termos:
“Desobituário –
Cumpre-me o fortunoso dever de participar aos amigos e parentes de fulano de
tal, irmão do professor sicrano e membro efetivo e emérito da fraternidade da
qual sou Chefe Supremo, que o citado não foi a óbito. Uma vez que o falso
finado vem recebendo ultimamente precárias alegrias de receber amigos em sua
residência, o mesmo agradece a bondade, se puder dar uma passada e levar seus
cumprimentos, expressar suas alegrias por se constatarem falsas as suposições
do seu passamento. No intuito de alcançar objetivos práticos, recomenda-se
levar alguma coisa sonora ao gosto do dono da casa, tipo Mozart, Chopin,
Beethoven, Schubert ou Rossini, evitando-se, por precaução, o compositor russo
Tchaikovsky, porque durante vários séculos a Rússia vem exaltando seus
artistas, constituindo-se investidas para o controle e poderio global, o que
está fora da cartilha atualizada do xenofobismo idiota predador.”
Quanto à morte
propriamente dita, eu mesmo não a espero dia e hora nenhuma. Sempre soube, no
entanto, e da mais penosa forma, que, mesmo sem convocação, ela é infalível. E
merece respeito. Como bem exprime Ana Dubeux: “Faça um favor ao mundo: não mate
a morte. Fale sobre ela; escreva sobre ela. Respeite a importância e o tamanho
dela na vida de alguém. Tão viva quanto qualquer outra condição natural da
existência humana, a morte é uma possibilidade real e concreta no amanhã de
todos nós e de todos os que amamos. Por essa razão, havemos de aprender a lidar
com os barulhos e os silêncios que a sucedem e que também a antecedem.”
Acabei de ler “Viver
para contar”, um livro que sempre me interessou porque nele, o grande Gabriel
García Márquez se aprofunda nos mistérios do seu ofício a partir das vivências
no mundo fantástico das Américas, particularmente de sua Colômbia. Em “Viver para
contar”, Gabo confessou: “Não me interessava a glória, nem o dinheiro, nem a
velhice, porque tinha certeza de que morreria muito jovem e no olho da rua”.
Morreu aos oitenta e sete anos, com glória e pecúnia. Meu amigo falsamente
morto irremediavelmente precisará de um obituário, e se for eu o autor da peça
sobre seu desaparecimento, se antes eu próprio não for o inscrito no livro dos
defuntos, pretendo recitar Ariano Suassuna: