Bolsonaro aposta na fidelidade canina dos seus e na memória fraca do público em geral
Por-Guga Noblat
Com a costumeira empatia zero, o presidente Jair Bolsonaro
usou uma menina de 11 anos, vítima de estupro, para criticar o direito ao
aborto legal. Bem que tentou desviar as atenções do escândalo envolvendo o seu
ex-ministro da Educação, por quem ele já colocou a cara no fogo, e agora,
arrependido, só põe a mão. Mas desta vez não deu muito certo. No meio da tarde
da sexta-feira, a suspeição de que ele interferiu nas investigações o
empurraram para as cordas.
Ainda que a combinação perversa – sigilo do que importa e
palavrório polêmico para abafar os temas que incomodam – tenha falhado,
Bolsonaro aposta na fidelidade canina (ou será bovina?) dos seus e na memória
fraca do público em geral. Isso explicaria o efeito tefal observado nas
pesquisas de opinião, que, a despeito do cenário adverso para o presidente, o
deixam no mesmo lugar – não sobe, mas também não despenca.
Mesmo evidenciando a gravidade do recuo civilizatório do
país, a avalanche de ocorrências escabrosas ironicamente contribui para
colocá-las no esquecimento. O arremedo golpista de 7 de setembro do ano
passado, por exemplo, quase eclipsou o genocida da pandemia, aquele que corria
da raia dizendo que não era coveiro. E assim vai.
A farra dos pastores no MEC, denunciada pelo Estadão há menos
de três meses, só voltou à tona com a prisão de Milton Ribeiro, que começa a
fazer sombra às mortes cruéis de Bruno e Dom, responsáveis por escancarar o domínio
da Amazônia pelo crime organizado. Concorrem ainda com as notícias da fome
afligindo 33% da população, com a procuradora espancada por colega e a juíza
que tenta induzir uma criança vítima de estupro a abrir mão do direito de
aborto. E Genivaldo de Jesus Santos? Quem se lembra?
É difícil apagar da mente a cena da asfixia de Genivaldo no
camburão, empurrado violentamente por fardados armados, com fumaça saindo por
todos os lados.
Mas aqui, além dos horrores de hoje suplantarem os do dia
anterior, provocando o esquecimento, conta muito a escola bolsonarista do
manter tudo escondido, travar qualquer possibilidade de transparência no que
possa causar prejuízos. Utilizando-se de uma interpretação absolutamente torta
da Lei de Acesso à Informação, a Polícia Rodoviária Federal impôs sigilo de até
100 anos sobre os processos administrativos dos agentes envolvidos na ação. Ao
Metrópoles, alegou que seriam “informações pessoais”.
A PRF só decidiu ler a lei a seu bel prazer por ter costas
largas. Bolsonaro já determinou sigilo de até 100 anos no processo contra o
ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, sobre as visitas de seus filhos – todos
parlamentares – ao Palácio, incluindo seus acompanhantes, de seu cartão de
vacinação. Até tentou, sem sucesso, impedir que as 35 entradas dos pastores
lobistas do MEC no Planalto ficassem lacradas por um século.
Já no primeiro ano de mandato, injuriado com as diligências
da Coaf nas contas de seu rebento Flávio, enrolado com as rachadinhas, o papai
presidente decidiu mudar a gerência, a vinculação e até o nome do Conselho, que
passou a chamar Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Movimento tão fake
que nem o novo nome colou. Mas serviu para assustar servidores, reorientar e
apagar investigações.
Não há um só órgão de fiscalização que tenha saído ileso. Sob
Bolsonaro, todos, absolutamente todos perderam poder de investigação. Ibama,
Funai e Inpe lideram o rol de organizações dinamitadas, que ainda inclui
vítimas de assédio institucional como o ICMBio e o IBGE e várias universidades
federais, acusadas de proselitismo de esquerda.
Esse enredo macabro de bravatas, mentiras, destruição e
sigilo ainda pode fazer sucesso. Mas deveriam se limitar à seara do
entretenimento, novelões e filmes B. O repertório do Brasil tem de ser outro.
Mary Zaidan é jornalista.