A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, que será
votada nos próximos dias pelo Congresso, pode aprofundar a tendência atual de
transferir do governo federal para deputados e senadores o poder de decidir
onde devem ser gastas verbas públicas, por meio de emendas parlamentares.
Essa trajetória foi iniciada em 2015, durante o confronto
entre a então presidente, Dilma Rousseff, e o então presidente da Câmara,
Eduardo Cunha, e vem se aprofundando. Neste ano, o valor das emendas
parlamentares no Orçamento representa 24% das despesas discricionárias (não
obrigatórias) do governo federal, contra 4,3% de cinco anos antes, segundo
cálculo do economista Marcos Mendes, do Insper. Comparadas ao total de
investimentos federais, as emendas respondem por cerca de metade do valor.
A transferência de poder do governo federal para os
congressistas tem implicações que vão além do destino das verbas. Repercute na
qualidade e na fiscalização do gasto, na capacidade de o país definir
prioridades estratégicas e na governabilidade do presidente – que segue sendo
politicamente responsável pelo resultado das políticas públicas, mas vê sua
margem para executá-las cada vez mais reduzida, segundo especialistas
consultados pela DW.
As emendas parlamentares são alterações que os congressistas
fazem no Orçamento para destinar verbas a uma determinada localidade, em geral
às suas bases eleitorais. Novas regras aumentaram o peso das emendas no
Orçamento, e a depender dos líderes do Congresso, a LDO de 2023 ampliará ainda
mais o controle dos congressistas sobre o destino de recursos federais. A bola
da vez é tornar obrigatória a execução das chamadas emendas de relator
(definidas pelo congressista escolhido como relator-geral do Orçamento).
Os Estados Unidos têm um instrumento semelhante às emendas
parlamentares, conhecidas lá como pork barrel. Mas o impacto é muito menor se
comparado ao Brasil. Em 2021, as despesas com esse tipo de emenda somaram 17
bilhões de dólares, ou 1,1% da despesa discricionária primária total do governo
americano, segundo cálculo de Mendes.
Como as emendas
funcionam
Há quatro tipos de emendas parlamentares. As individuais
(indicadas por um congressista específico), de bancada (atendem às bancadas de
cada unidade da Federação), de comissão (solicitadas por esses órgãos
colegiados do Congresso) e de relator.
Até o primeiro governo Dilma, as emendas individuais eram
incluídas pelos congressistas no Orçamento, mas a liberação da verba dependia
do aval do Palácio do Planalto. Como resultado, nem todas eram executadas, e o
presidente de ocasião as usava para negociar o apoio de parlamentares ao
governo.
Em 2015, durante o conflito entre Dilma e Cunha, que liderava
o Centrão, o Congresso aprovou uma emenda constitucional que tornou as emendas
parlamentares impositivas, ou seja, de execução obrigatória. Em 2022, cada
deputado ou senador teve direito de apresentar até 25 emendas, no valor total
de R$ 17,6 milhões. Somando todos os congressistas, são R$ 10,5 bilhões.
Em 2019, outra emenda constitucional aprovada pelo Congresso
fez com que as emendas de bancada também se tornassem impositivas. Para 2022,
estavam reservados no total R$ 7 bilhões para as emendas de bancada – os
congressistas aceitaram reduzir para R$ 5,7 bilhões, em troca de usar a sobra
de R$ 1,3 bilhão no fundão eleitoral.
Também a partir de 2019, a verba das emendas parlamentares
pôde começar a ser direcionada diretamente para o caixa de municípios ou de
estados, sem vinculação a um projeto específico. Essa prática foi apelidada de
“emenda Pix”. Os recursos podem ser usados inclusive, por exemplo, para
contratar shows de músicos, e a fiscalização federal sobre o destino da verba é
dificultada.
A novidade das emendas
de relator
A invenção mais recente para ampliar o poder dos
congressistas sobre as verbas federais foram as emendas de relator, que são
incluídas pelo relator-geral do Orçamento. Essa modalidade esteve por trás do
escândalo dos Anões do Orçamento, revelado em 1993. Para evitar novos esquema
do tipo, o Congresso modificou as regras na década de 1990, e as emendas de
relator passaram a ser usadas apenas para pequenas correções na peça
orçamentária.
Isso mudou em 2020, no segundo ano do governo Jair Bolsonaro,
quando uma nova regra autorizou que as emendas de relator, agora sob o código
RP-9, pudessem ser usadas para incluir altas somas no Orçamento, em sua maioria
para beneficiar congressistas alinhados ao Planalto.
Como as emendas individuais já eram impositivas, as emendas
de relator viraram uma nova forma de o governo – em coordenação com o Centrão –
distribuir recursos para quem o apoiasse, mas de forma muito menos
transparente, pois essas emendas não incluíam o nome do congressista
responsável pelo pedido nem eram divulgadas de modo sistematizado.
Após uma série de reportagens sobre o chamado Orçamento
secreto publicadas pela imprensa brasileira em 2021, inicialmente pelo jornal O
Estado de S. Paulo, o mecanismo foi questionado junto ao Supremo Tribunal
Federal e ao Tribunal de Contas da União.
No final do ano, uma regra passou a exigir a indicação do
nome da pessoa interessada na emenda. Mas, além do nome do congressista, é
admitido também um “usuário externo”, ou seja, outra pessoa física interessada,
o que esconde o padrinho político. Em 2022, essa modalidade responde, até o
momento, por um terço do total das emendas de relator negociadas, segundo
levantamento do jornal Folha de S.Paulo.
Em 2022, o Orçamento prevê R$ 16,5 bilhões para emendas de
relator. Sua liberação depende do aval do Planalto, que usa o instrumento para
obter apoio, como por exemplo para a aprovação da PEC que amplia benefícios
sociais e estabelece o estado de emergência no país às vésperas da eleição.
A comissão mista de Orçamento incluiu no projeto de LDO de
2023 uma regra que torna as emendas de relator também de execução obrigatória a
partir do ano que vem, quando a previsão é de R$ 19 bilhões para essa rubrica.
É esse texto que será votado pelo Congresso nos próximos dias. A proposta foi
criticada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato ao
Planalto, e deputados da oposição ajuizaram um mandado de segurança no Supremo
contra a iniciativa.
Quais são os problemas
dessa tendência
Os congressistas que defendem a ampliação das emendas argumentam
que se trata de um instrumento legítimo para atender às necessidades da
população, como, por exemplo, construir uma ponte ou comprar ambulâncias e
tratores.
Alguns deputados e senadores também dizem conhecer melhor as
necessidades do povo do que o governo, pois têm contato frequente com suas
bases. É o que afirmou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em maio: “O
Congresso tem 513 deputados e 81 senadores que conhecem mais o Brasil do que
cada ministro indicado no governo do PT ou reeleito do presidente Bolsonaro.”
Esse raciocínio, porém, tem alguns problemas, segundo Mendes,
do Insper. Ele lembra que a federação brasileira distribui competências para
cada um dos entes – municípios, estados e governo federal. E já existe um
sistema de transferência obrigatória de recursos federais para prefeituras e
governos estaduais, além da capacidade de cada um deles arrecadar tributos – o
ICMS, no caso dos estados, e o IPTU, no casos dos municípios, por exemplo.
“O que se está fazendo [com as emendas] é tirar o dinheiro do
governo federal que iria para financiar políticas federais”, diz Mendes.
O cientista político Fernando Meireles, pesquisador do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), reconhece que muitos municípios
brasileiros estão em situação fiscal difícil. Contudo, avalia que o aumento do
peso das emendas parlamentares não os fortalece, e sim aumenta sua dependência
dos congressistas.
“Em uma situação fiscal complicada, como a que a gente vive,
os municípios estão sem ter muito como investir para melhorar sua
infraestrutura urbana. Mas esse processo de fortalecimento do Congresso
beneficia os municípios? Na prática, não. Não são todos os municípios que se
beneficiam disso, e você não sabe se há municípios que precisariam de mais
investimentos mas não recebem porque não estão alinhados a nenhum parlamentar”,
afirma.
Ele diz que ajustes no pacto federativo deveriam ser feitos
de outra forma, “mais estrutural, sobre distribuição de tributos e
arrecadação”. O maior peso das emendas, afirma, “fortalece os parlamentares no
relacionamento deles com os prefeitos que porventura serão beneficiados, mas
não serão todos”.
Qualidade do gasto
público
Outro problema dessa tendência, afirma Mendes, é a qualidade
do gasto público, já que as emendas são, por natureza, fragmentadas, “muitas
vezes para atender um fornecedor do parlamentar”, e destinadas a investimentos
que não têm grande impacto agregado no longo prazo.
“Mais da metade do investimento federal se dá hoje por meio
de emendas, e o pouco dinheiro que você poderia usar para um ou dois projetos
de maior impacto está sendo usado para asfaltar rua, construir muro de arrimo”,
diz.
As emendas Pix, afirma, são especialmente problemáticas, pois
são de difícil fiscalização e acabam virando um instrumento para “personalizar
ainda mais a política”, já que muitos congressistas têm parentes que são
prefeitos e acabam beneficiados.
Meireles, do Cebrap, relata que, até o primeiro governo
Dilma, o Executivo tinha um “papel coordenador” sobre os gastos via emendas, e
podia priorizar áreas e programas. “Existia uma racionalidade no gasto público,
estudos anteriores que embasavam a formulação das políticas […] Agora o
parlamentar pode mandar diretamente [para o município], sem passar por convênio
ou indicar área de gasto, pode simplesmente mandar um cheque em branco.”
Ele diz que os congressistas têm alguma razão ao dizer que o
sistema anterior para a liberação de emendas era muito burocrático, mas a
solução encontrada “torna a distribuição do gasto completamente caótica, cada
um manda para onde quer sem pensar no conjunto da população brasileira”.
Governabilidade do
presidente
Outro aspecto problemático do aumento do peso das emendas é o
impacto na governabilidade do país. Mendes afirma que, no desenho institucional
brasileiro, o Executivo é responsável pelos resultados das políticas públicas,
mas os instrumentos para executá-las estão migrando para o Legislativo, “que
decide sobre os gastos mas tem pouca responsabilidade sobre as consequências”.
Do ponto de vista dos congressistas, contudo, os incentivos
atuais são para destinar ainda mais verbas, pois isso os fortalece na relação
com suas bases e deixa prefeitos locais dependentes de sua atuação em Brasília.
“Isso leva a mais instabilidade, pois o equilíbrio político que a gente
construiu é muito tênue.”
Meireles, do Cebrap, avalia que a ampliação das emendas de relator ocorreu no governo Bolsonaro porque ele acabou “virando refém do Centrão”, e isso se tornou um último recurso para que o presidente conseguisse manter o apoio desse grupo político. “Os próximos governos terão muita dificuldade de lidar com isso, porque boa parte dessas mudanças foram constitucionalizadas, e é difícil aprovar outra PEC para retirar uma mudança que foi feita”, diz.