Fábio Mozart: Escritor, dramaturgo, jornalista e radialista brasileiro
Certa noite do ano da Graça de 1914, algumas pecaminosas garotas desfilaram nuas e descalças pelas areias do rio Paraíba, debaixo da ponte, parada patrocinada pelo bar, restaurante e rendez-vous Recreio das Mariposas, através dos seus clientes ferroviários e alguns turistas atraídos pelos ares agrestes limpos, saudáveis e bem atenuados da singela cidade, ao tempo em que a grafia antiga manifestava que se tratava de Itabayanna. Diz a lenda que o ajudante de sacristão José Pereira da Silva, conhecido pela alcunha de Pingolenço, testemunhou o fato delituoso obsceno e foi depoente no boletim de ocorrência lavrado na delegacia local, onde afirmou que “realmente o mesmo assistiu ao ato pecaminoso das mulheres de vida aberta e que fechou os olhos e começou a contar, no intuito de evitar o pecado daquela visão indecorosa, tendo contado até duzentos, depois parou e arregalou os olhos”. O citado Pingolenço veio a se tornar um grande artista e artesão, autor da montagem do relógio da igreja matriz, tendo em vista que a peça veio da Inglaterra sem manual de uso nem técnico para instalação. O povo daquela pacata cidade está pra ver até hoje um gênio do nível de Pingolenço, espécie de Da Vinci provinciano.
Quem me dá notícias dessa notícia é o pesquisador Jocelino Tomaz de Lima, autor do livro Cem Anos De Fé, Tradição e Turismo – Caiçara, Logradouro, Tacima. Esse jovem dedicou a vida a estudar o passado de sua gente, de quem sou amigo, uma camaradagem proveitosa e aprazível como as melhores coisas da vida. A hemeroteca de Jocelino permite ampla consulta ao nosso tempo pregresso. Adiantando que hemeroteca é uma coleção de recortes de jornais antigos. Esta nota saiu no “O Norte” de 1914:
“Famílias residentes em Itabayanna reclamam, por nosso intermédio, da auctoridade local, providencias contra o costume de algumas mulheres de vida alegre tomarem banho no rio, inteiramente despidas, com ofensas da moral pública. O rio é inteiramente descampado, de sorte que o alludido cinema natural não é nada edificante”.
Na mesma matéria, o jornal protestava contra outra variação sobre o tema indecência:
“Outrossim, chama-se a attenção da polícia de Itabayanna contra a desídia da polícia da mesma cidade, a qual permitte a prática abusiva do molecório e de indivíduos desclassificados, que pernoitam nos carros da Great West onde realizam actos indecorosos e ao mesmo tempo emporcalham os wagões. Os reclamantes exigem do delegado de Itabayanna, ou cousa que o valha, mais zelo pelo cumprimento de seus deveres, tendo-se principalmente em vista que aquella cidade já tem luz electrica e é dotada de outros melhoramentos que a collocam na vanguarda das mais progressistas do Estado. Outrossim, o policiamento da cidade, propriamente dito, consta de 2 soldados apenas, estando as praças restantes entregues à cobrança do imposto”.
Da nota, salienta-se que as ditas famílias de bem morriam de medo da vida das mundanas e contra essas moças a sociedade costumava baixar a lenha da repressão, através dos seus agentes, sejam padres, policiais ou a imprensa conservadora. Ao final, a notícia ressalta que o governo sempre esteve mais interessado na arrecadação das taxas do que na segurança pública. Alguns anos depois, década de 30, o prefeito Durval de Almeida mandou fechar os prostíbulos da cidade para o bem da moral pública. Com as chamadas “casas de tolerância” fechadas pela intolerância oficial, as rameiras da rua do Carretel passaram a pedir esmolas na rua. Quem defendeu essas pobres criaturas? O palhaço Pingolenço tomou as dores das meretrizes. Quase sozinho, começou uma campanha para derrubar o decreto do Prefeito e a portaria indecente do delegado, que “depõe contra a dignidade humana”. Tanto fez que conseguiu abrir as casas das messalinas, salvando-as da falência.
POR FÁBIO MOZART