O fantasma que ronda a reeleição de Bolsonaro nas camadas mais pobres é o luto das famílias desestruturadas por 672.101 óbitos por covid-19
Começo a prosa com um pedido de desculpas aos leitores, por
não ter escrito a coluna de domingo, como estava combinado, desde que entrei em
férias. Na quinta-feira passada, testei positivo para a covid-19. Apesar de ter
tomado quatro doses de vacinas, essa nova variante da Ômicron me tirou de
circulação. Felizmente, duas Sinovac/Butantan, uma Pfizer e outra AstraZeneca
estão amenizando meus padecimentos. Segundo meu infectologista, essa variante
concentra seus ataques na garganta e no nariz, como foi o meu caso e o da
maioria dos seus pacientes, alguns com tanta dor na garganta que foram
internados.
Depois de um mês em férias, vou tratar de um assunto que não
sofreu grandes alterações nesse período: a polarização entre o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, que vem se mantendo
nesta pré-campanha eleitoral. Essa polarização está sendo atribuída ao fato de
que, pela primeira vez, temos uma disputa entre um ex-presidente da República,
que governou por dois mandatos e deixou governo com alta aprovação, e um
presidente da República que disputa a reeleição no exercício do mandato, quando
sabemos que todos que tiveram essa possibilidade foram reeleitos. O resultado
da disputa seria uma equação entre as realizações do passado e as adversidades
do presente. É uma leitura da chamada real política.
Mas será que o favoritismo de Lula pode ser atribuído apenas
a isso? Parte de sua resiliência deve-se ao enraizamento do PT nos movimentos
sociais e seu entrincheiramento nos grupos indenitários, em condições muito
adversas, após o impeachment de Dilma Rousseff, o que merece mais reflexão.
Numa das suas entrevistas, o historiador Eric Hobsbawm faz uma observação
interessante sobre o enfraquecimento dos partidos socialistas europeus,
atribuindo-o às mudanças ocorridas na estrutura de classes da sociedade
pós-industrial e ao fato de que a desestruturação da família unicelular
patriarcal pela revolução dos costumes restringiu a capacidade desses partidos
se reproduzirem no ambiente familiar, como sempre fizeram.
Os partidos marxistas fizeram a crítica da "família
burguesa" como uma forma de dominação, mas a "família
socialista" também era monogâmica e heterossexual. Foram os anarquistas,
socialistas utópicos e as feministas que não se conformaram com os limites da
dupla jornada de trabalho, contribuindo com a renda familiar e arcando com os
afazeres domésticos, que caracterizavam a relação homem/mulher na família
proletária moderna. Ao se refugiar nos movimentos identitários, no momento de
refluxo de sua influência política, a militância petista deu cavalo de pau e
foi uma tábua de salvação para Lula, tecendo, inclusive, as alianças que
tornaram sua candidatura amplamente preferida entre os eleitores de esquerda.
Católicos e evangélicos
A outra face dessa moeda, sem dúvida, foi a eleição de Jair
Bolsonaro em 2018, muito favorecido pelas circunstâncias políticas, a operação
Lava-Jato e a forte repercussão da facada que levou em Juiz de Fora, em plena
campanha, alavancando sua candidatura, enquanto estava entre a vida e a morte.
Bolsonaro saiu da sua bolha reacionária quando capturou o sentimento de
preservação da família unicelular patriarcal, monogâmica e heterossexual, como
estrutura social básica da sociedade, principalmente para as camadas mais
pobres da população, ameaçadas pelas desigualdades sociais, a baixa renda, o
desemprego, a desestruturação das relações homem/mulher e pais/filhos, a evasão
escolar, as drogas e a prostituição.
A orientação conservadora da Igreja Católica, a partir dos
papados de João Paulo II e Bento XVI, desarticulou as chamadas comunidades
eclesiais de base. Seus militantes derivaram para o PT, porém a influência
católica nas parcelas mais pobres da população brasileira se esvaiu. As
denominações evangélicas ocuparam esse espaço, empunhando a bandeira de defesa
da família tradicional e as teses mais conservadoras do cristianismo, com
exceção do celibato de seus sacerdotes e outros dogmas de Roma.
A aliança de Bolsonaro com esses setores evangélicos é muito
mais responsável pela sua resiliência eleitoral nas camadas populares do que
suas realizações e a força do corporativismo de setores beneficiados por seu
governo, como militares, policiais, ruralistas, caminhoneiros, garimpeiros,
atiradores, motociclistas etc. O papel da religião, bem situado na esfera
ideológica da sociedade, como outras instituições — o sistema educacional e os
meios de comunicação, por exemplo —, também precisa ser considerado por esse
ângulo antropológico, ainda que a aliança de Bolsonaro com as igrejas
evangélicas tenha adquirido a dimensão das práticas mais deploráveis da
política brasileira, como o clientelismo, o fisiologismo e o patrimonialismo,
haja vista o novo escândalo do Ministério da Educação.
E a "gripezinha"? O fantasma que ronda a reeleição de Bolsonaro nas camadas mais pobres é o luto das famílias desestruturadas por 672.101 óbitos por covid-19, de um total de 32,5 milhões de casos registrados da doença. Como a cobertura da vacina não é completa, o atual número de mortes atingiu a média de 214 por dia, o que agrava ainda mais a nossa crise social.