Deterioração da gestão das contas públicas provoca uma piora da percepção de risco dos investidores internacionais com a economia brasileira, levando a uma desvalorização do real e, consequentemente, a mais inflação. Proposta aprovada pelo Senado trará um impacto fiscal de R$ 41,2 bilhões para governo.
PEC 'Kamikaze' foi aprovada pelo Senado — Foto: Waldemir Barreto/Agência SenadoA soma de R$ 41,2 bilhões em benefícios sociais inseridos na
proposta de emenda à Constituição (PEC) aprovada nesta quinta-feira (30) pelo
Senado Federal traz temores de um "efeito rebote" na inflação
brasileira.
Na prática, os analistas dizem que a proposta — originalmente
batizada de 'Kamikaze' pelo próprio ministro da Economia, Paulo Guedes — deixa
ainda mais nebulosa a gestão das contas públicas do país, o que pode levar a um
cenário já enfrentado pelo Brasil em outras ocasiões. Pode haver uma piora da
percepção de risco dos investidores internacionais com a economia brasileira,
levando a uma desvalorização do real, o que tem potencial para provocar mais
inflação.
Ou seja, uma proposta desenhada para trazer algum alívio para
o bolso da população pode acabar agravando a situação financeira das famílias.
A PEC 'Kamikaze" prevê, por exemplo, um aumento do valor do Auxílio Brasil
de R$ 400 para R$ 600 e a criação de um "voucher" de R$ 1 mil para
caminhoneiros autônomos até o fim do ano.
Veja os principais
pontos da PEC que prevê ampliação de benefícios sociais a 3 meses das eleições
Risco-país cresce mais no Brasil do que em outros países da
América Latina
Senado aprova PEC que prevê estado de emergência para ampliar
benefícios sociais
Com um cenário de inflação ainda mais pressionada, a tendência
é que os juros fiquem em patamares altos por mais tempo, o que causa um freio
aos investimentos de empresas e à criação de empregos no médio e longo prazo.
E o quadro já é bastante difícil. O Índice Nacional de Preços
ao Consumidor Amplo (IPCA) — a inflação oficial do país — está acima de 10%
desde setembro do ano passado, e a taxa básica de juros (Selic) chegou a
13,25%, a mais elevada desde 2016.
"O Banco Central tem enfrentado cada vez mais
dificuldade de trazer a inflação para a meta. E, à medida que cresce o risco
fiscal, essa cadeia de efeitos se agrava e a tarefa fica cada vez mais
difícil", diz Christopher Galvão, analista da Nord Research.
“O que deveríamos estar discutindo é um controle de gastos em
busca de crescimento econômico sustentável”, acrescenta.
Em 5 anos, real perdeu 30% de seu poder de compra
Carrinho esvaziado: a queda do poder de compra de R$ 200 em
dois anos.
Primeira reação: dólar
sobe forte
Os primeiros sinais foram dados pelo câmbio nesta sexta-feira
(1º). O dólar fechou em alta de 1,68%, cotado a R$ 5,3206. A moeda americana
está no patamar mais alto desde fevereiro.
E um dos motores da inflação brasileira desde a chegada da
pandemia do coronavírus tem sido justamente a desvalorização do real.
Os produtores de alimentos, por exemplo, preferem exportar
seus produtos a um dólar valorizado do que vender para indústrias nacionais. O
efeito é diminuição de oferta interna e aumento dos preços.
Para os combustíveis, a lógica é parecida. Como o barril de
petróleo é cotado na moeda norte-americana, ele fica mais caro conforme o real
fica mais fraco.
E, desde que foi instaurada a política de paridade de preços
internacionais (PPI) pela Petrobras, em 2016, o mercado tenta igualar o preço
da gasolina na refinaria com o valor internacional. Ou seja, os reajustes são
resultado das oscilações dos preços do petróleo e do câmbio.
Como são formados os preços da gasolina e do diesel?
Entenda a política de
preços da Petrobras
Só no mês de junho, o dólar subiu mais de 10% frente ao real.
Parte desse resultado precisa ser atribuído ao aperto monetário nos Estados
Unidos. Para combater a inflação, o Federal Reserve (banco central americano)
iniciou uma alta de juros por lá.
O aumento das taxas tira dólares de economias emergentes e os
leva de volta ao país, porque lá estão os títulos do Tesouro americano,
investimentos mais seguros do mundo.
Mas, por outro lado, a desvalorização do real também sofre
efeitos de uma acentuação da crise nas contas públicas, uma frustração das expectativas
de crescimento do país e uma contínua instabilidade política em Brasília, que
fazem os investidores internacionais fugirem do país.
A PEC aprovada nesta quinta, que intensifica os gastos do
governo, tem potencial de piorar essa impressão e alimentar uma nova arrancada
do dólar.
Mais um problema para
as contas públicas
Desde o ano passado, algumas medidas do governo Jair
Bolsonaro deixaram claro que o ano eleitoral estaria à frente da crise fiscal
entre as prioridades.
Em dezembro, pegou mal para o mercado financeiro o mecanismo
de financiamento do Auxílio Brasil, novo programa social que substituiu o Bolsa
Família, por fora do teto de gastos. O governo trabalhou para aprovar a PEC dos
precatórios, que, depois da tramitação no Congresso, liberou R$ 106 bilhões
para gastos em ano eleitoral.
Esse "drible" no teto foi encampado inclusive pelo
ministro Paulo Guedes, a quem agentes do mercado confiavam a imposição de uma
agenda de controle rígido das finanças do país.
De lá para cá, o real passou por um período de valorização.
Investidores interpretaram que o país estava bem posicionado por suas empresas
de commodities enquanto se desenrolava a guerra na Ucrânia.
Em abril, a moeda americana chegou duas vezes à casa dos R$
4,60. Mas a subida de juros pelo Fed, a expectativa de que as economias globais
entrem em recessão e novas pautas que avançaram no Congresso contra a situação
fiscal do país reverteram a tendência.
A economista-chefe da Tenax Capital, Débora Nogueira, lembra
que tentativas de resolver o aperto financeiro da população pela distribuição
de recursos, sem uma receita de compensação, tende a carregar a inflação forte
por mais tempo.
Próximo governo terá de equilibrar mais despesas obrigatórias
com menos receitas de impostos
Entenda os desafios
fiscais que o Brasil vai enfrentar em 2023
"O Brasil caminhava para um ano de superávit primário,
mas terá uma renúncia importante de receitas. É um desafio enorme de arrecadação
para evitar um aumento brusco da dívida pública", afirma.