Documento da coligação “Pelo Bem do Brasil” é repleto de autocongratulações e traz visão desfigurada da condução da pandemia pelo atual governo
A CPI da Covid registrou que o governo federal, demorou a comprar vacinas, minimizou a pandemia, desacreditou orientações científicas e jogou contra medidas para conter a transmissão do vírusO plano de governo do candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) para a saúde mistura autocongratulações com respostas antecipadas aos ataques que virão dos adversários. A definição é do professor da Faculdade de Medicina da USP Mário Scheffer, em artigo publicado hoje (16) em seu blog no Estadão. O especialista se refere aos dados apresentados no documento protocolado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pela coligação “Pelo Bem do Brasil”.
Scheffer afirma que nos últimos três anos e meio a rede pública do SUS encolheu, a cobertura vacinal diminuiu, a mortalidade materna aumentou, e a combinação do trio desigualdade, pobreza e fome determinou mais adoecimentos e mortes.
No entanto, o programa mostra uma realidade desfigurada do país. A desastrosa condução do combate à covid-19, que resultou na perda de, até aqui, mais de 680 mil vidas, é tratada pelo governo como “marcas invejáveis durante a pandemia”.
Segundo Scheffer, é verdade que houve distribuição de 519 milhões de doses de vacinas contra o novo coronavírus, conforme destacado no plano de Bolsonaro para a saúde. Mas não é verdade que o governo tenha evitado cerca de um milhão de mortes no Brasil até o final de 2021, conforme o documento.
“O programa se refere a um estudo internacional sobre 185 países – Brasil entre eles –, que considerou as mortes evitadas em cada país no período de um ano após o início da imunização”, disse. No entanto, completou, existem fartas evidências de que dezenas de milhares de mortes evitáveis já haviam ocorrido no Brasil antes da primeira dose da Coronavac ser aplicada, em 17 de janeiro de 2021, em São Paulo.”
Plano de governo “Pelo Bem do Brasil”
O professor lembrou que, ao propor indiciamentos, a CPI da Covid registrou que o governo federal demorou a comprar vacinas, minimizou a pandemia, desacreditou orientações científicas e jogou contra medidas para conter a transmissão do vírus. Acontecimentos, aliás, que a julgar pelo documento da coligação “Pelo Bem do Brasil” fazem parte de um enredo de ficção sobre a história recente do país.
Mais uma vez, a candidatura Bolsonaro solta uma “prestação de contas”, do que se fez antes de problemas graves terem sido causados por má condução do país na pandemia. Impossível esquecer o apagão de oxigênio em Manaus e em cidades vizinhas, onde a escassez do recurso essencial no tratamento dos doentes já era de conhecimento do Ministério da Saúde. No entanto, o atraso nas providências levou dezenas de pessoas, numa tragédia que foi notícia no mundo.
Além disso, no rol de realizações da atual gestão, o plano de Bolsonaro para a saúde exalta a “eficiência e ampliação de serviços de saúde às comunidades indígenas”. No entanto, durante a época mais crítica da pandemia, ocorreu o contrário, como lembrou Scheffer. Os povos indígenas tiveram menor chance de ter diagnóstico precoce, tratamento no tempo certo, um leito de UTI, um respirador.
“O indigenista Bruno Araújo e o jornalista Dom Philips, assassinados, dedicaram parte de suas vidas justamente demonstrando que as aldeias têm precárias redes de comunicação, transporte, serviços de saúde e poucas oportunidades de geração de renda. E que a presença de invasores e a violência associada à ocupação predatória da Amazônia amplificam as doenças transmissíveis na região”.
Recursos para o SUS ficaram de fora
O especialista observou que propostas feitas na campanha de Bolsonaro em 2018 e não implantadas, como o Cartão Nacional de Saúde e a inclusão de profissionais de educação física nas equipes de saúde da família, foram recicladas e perderam ritmo. E que não se fala mais em “credenciamento universal” e da “carreira de Estado” de médicos.
Além disso, o subfinanciamento do SUS e o aumento das mensalidades de planos de saúde, que bateu recorde na atual gestão federal, sequer são mencionados no plano. Assim como o desmonte da ciência e da pesquisa, das ações de prevenção e combate a outros problemas de saúde pública, das políticas para pessoas com deficiências, de promoção da diversidade étnica e cultural, e de identidades de gênero.
O plano de Bolsonaro para a saúde, que em comparação ao de 2018 parece menos improvisado, traz ainda mais deslizes. Afirmações contidas no documento fazem acreditar que no Brasil os recursos para os serviços de qualidade estão disponíveis para todos. Como se todos tivessem acesso a alimentos e por trás do adoecimento não estivessem as determinantes sociais da saúde. “Os serviços de saúde de qualidade aumentam as possibilidades de disfrutar (sic) de uma vida saudável”; “a boa alimentação inibe o aparecimento de doenças”; “15% do total de internações pelo SUS é atribuído à falta de exercícios físicos”, são exemplos.
Outro deslize: batizado há 38 anos como Sistema Único de Saúde, o SUS é chamado no plano de Bolsonaro de “ Sistema Nacional Único de Saúde”. Se fosse pouco, tratado ainda como algo “coordenado e dirigido pelo Ministério da Saúde”. Conforme corrigido pelo professor Mário Scheffer, por lei, a direção do SUS é única, exercida em cada esfera de governo. “Nos Estados e municípios, quem coordena e dirige o SUS são as secretarias de saúde, tantas vezes desprezadas pelo Ministério da Saúde nos últimos tempos.”