Compadre Heráclito era um
filósofo oral, presente na comedia dell’arte da ciranda, no aboio, no
papangu, no babau e nos ponteados de violeiros repentistas. Esse estimado
pensador vinha da cidade por nome Mogeiro, na região do agreste da Paraíba, na
plenitude dos seus trinta e três anos, idade do Eterno, quando resolveu
atravessar a nado o rio Paraíba. Para encurtar caminho, flutuou de braçada até
o lugar chamado Salgado de São Félix, onde deu de cara com o violeiro Manoel
Xudu em uma birosca na beira do rio cheio. Depois de tomar duas garrafas de zinebra,
famoso conhaque de pobre, Manoel Xudu pediu um mote ao filósofo Heráclito.
Movido pela experiência de ter atravessado o rio a nado, de olho na realidade
circundante, Heráclito largou a estrofe para um curruchiado de viola nos
seguintes termos galopantes: “A vida é joguete de transformação / cantando
galope e mudando geral”. Cumprindo sua missão sagrada de espalhar arte naqueles
ásperos torrões de fortes ligações com o curso de água nascido na serra de
Jabitacá, nos confins do cariri, Xudu modulou sua voz rouquenha de cigarro
Astoria sem filtro e acunhou, ao tinido da viola “Dinâmica”:
Passando no rio em pleno mormaço
Botei a pensar nessa aventura
Criei um bordão na literatura
Que a travessia será um cabaço
Que eu quebrarei toda vez que eu
passo
Pelo mesmo rio que nunca é igual
Mudamos nós todos para o bem ou
mal
A todo momento e ocasião
A vida é joguete de transformação
Cantando galope e mudando geral
Nisso aparece um cidadão por nome
Artur Fumaça, hábil tocador de violão, nascido na cidade Itabaiana do Norte,
acompanhado de um jovem conhecido por Biu da Rabeca. Os dois artistas mambembes
também eram chegados a um “chá de filosofia” feito com caldo de cana-de-açúcar.
Foram logo se abancando e declamando estrofes do poeta Zé da Luz com limão e
tira-gosto de isca de jabá. Sem pátria nem genealogia, os filósofos são assim
mesmo, se assentam em qualquer assembleia de bufões saltimbancos e deitam logo
“filosofança”, como diria Zé Limeira, o poeta da incoerência racional, que é o
osso da sopa dos trovadores insignes, feito o próprio Artur Fumaça, um sujeito
em si negativo e incrédulo quanto ao sentido da vida. No intervalo de uma
sambada de Biu da Rabeca, depois de se lamentar muito porque passou a noite
cantando “incelença” em louvor à “Ave Maria brandosa e bela, divina estrela,
guia do povo, honesta flor, joia mimosa e luz formosa” e mesmo assim morreu
Maria Preá, o agora descrente Artur Fumaça jogou o seguinte conceito no balcão
sujo da bodega: “Nós veve pra morrer e de minuto em minuto nós bate um prego no
caixão da caridade”.
Transcorria caudalosamente farta
de sabedoria e conveniente amizade a brincadeira dos debochados artistas,
quando surge na porta do boteco o cachorro Pitu, vira-lata presente nas
variadas cenas rurais e urbanas desde o descobrimento do Brasil, figura
metafórica da formação do povo brasileiro, cão que lambeu o sangue dos romeiros
derramado no arraial de Canudos e correu campo com Zumbi, respirando rebeldia e
latindo para preto, branco, sarará ou sem raça definida como o próprio Pitu, em
instintiva tradução do sonho de uma nação de iguais, sem oprimidos. Um capiau
que assistia à folgança levantou-se com a intenção de pontapear o cachorro
magro. Assustado, Pitu desapareceu, com a cauda devidamente enfiada entre as
perninhas descarnadas. Nisso levanta-se o ferreiro Emanuel, alcunhado de
Emanuel Quente devido ao seu ofício de manipular ferro em brasa. Metido a
glosador e gozador, Emanuel saiu-se com esse verso: Eu estando aqui presente / O
cachorro ele não chuta / Esse cabra vive irado / Com a consciência em luta / Porque
teve quatro filhas / E elas deram pra puta.
Sem saber, esse ferreiro Emanuel
Quente reproduzia o conceito do grande pensador da Modernidade, Immanuel Kant,
também artesão, autor da frase: “Podemos julgar o coração de um homem pela
forma como ele trata os animais".
Por Fábio Mozart