Um parecer da corte de contas, aprovado por unanimidade, mostra didaticamente que o orçamento secreto viola a Constituição
Por-Breno PiresO parecer do TCU que traz a novidade trata da prestação de contas da Presidência da República no ano de 2021 e foi aprovado por unanimidade pelos ministros do tribunal. Mas, entre suas 536 páginas, o parecer afirma que o uso das RP-9, as emendas de relator-geral, popularmente conhecidas como orçamento secreto por sua natureza sigilosa, fere a Constituição e outras duas leis – a de Responsabilidade Fiscal e a Lei Complementar 141.
De acordo com o relatório, são três violações constitucionais:
- Ao distribuir recursos da saúde e assistência social por “indicação parlamentar”, o orçamento secreto contraria dois artigos da Constituição, 195 e 198. Os dois artigos preveem que a transferência de recursos para o Sistema Único de Saúde e assistência social deve observar critérios definidos em lei. Os critérios estão estabelecidos no artigos 17 e 30 da Lei Complementar 141, em vigor há uma década.
- Ao ocupar a folga orçamentária resultante do cancelamento indevido de despesas obrigatórias, o orçamento secreto descumpre dois artigos da Constituição, 166 e 167, que proíbem esse tipo de operação.
- Ao manter sob sigilo a identidade de parlamentares autores das emendas, o orçamento secreto viola as determinações do Supremo Tribunal Federal de promover a transparência, um princípio constitucional expresso nos artigos 37 e 163-A da Constituição.
- Como o STF está analisando ações que tratam do orçamento secreto, assunto que está nas mãos da ministra Rosa Weber, o parecer do TCU deixa a suprema corte na cara do gol para considerar que o orçamento secreto viola a Constituição.
As ilegalidades apontadas pelos auditores vão além da falta de transparência sobre as emendas. Do modo como está sendo operado, o orçamento secreto também provoca um aumento da dívida pública. O Executivo e o Legislativo estão retirando recursos das despesas obrigatórias para cobrir as emendas dos parlamentares. Isso significa que a dívida vai aumentar e, para saldá-la, será necessário recorrer ao endividamento.
Os auditores também observam que, na sistemática atual das emendas parlamentares, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) passou a permitir o empenho de verbas sem os projetos e as licenças ambientais exigidos, e isso leva ao comprometimento de recursos com projetos que não estão tecnicamente preparados para implementação. Ou seja: a prática foi legalizada por meio de uma mudança na LDO, mas representa – e é para isso que os auditores do TCU chamam a atenção – um descalabro na gestão fiscal.
Um trecho do parecer expõe a questão nos seguintes termos: “A via de escape às restrições constitucionais eleita, em 2020 e 2021, para acomodar o volume expressivo de recursos destinados a emendas RP-9, em confronto com os princípios da universalidade, da transparência e do realismo orçamentário, compromete a governança da gestão orçamentária necessária para assegurar o cumprimento das normas gerais de finanças públicas fixadas pela LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal] e a sustentabilidade da dívida pública, que passou a ser exigida constitucionalmente com a promulgação da Emenda Constitucional 109/2021.”
O capítulo 4.2.1 do relatório detalha que as emendas de relator-geral não estão respeitando as restrições da Constituição para alterar o orçamento, por incluírem novas programações de gastos que vão além da sua finalidade original, que é a de corrigir erros das projeções ou omissões. Quando o orçamento secreto foi criado, em 2019, as emendas de relator não podiam servir para que parlamentares pudessem sair fazendo indicações, como têm feito. Os auditores colocam em xeque também a solução que a cúpula do Parlamento tirou da cartola no ano de 2021, depois da decisão da ministra Rosa Weber de barrar as emendas no fim do ano passado. A Resolução nº 2 do Congresso Nacional, de dezembro de 2021, não supera as “restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º, da Carta Política”, segundo o TCU.
O trabalho do TCU ressalta que houve deficiências nas estimativas e cancelamento de programações referentes a despesas obrigatórias. Aponta que “a alteração da LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] realizada no curso da execução do orçamento de 2021” teve por efeito “reduzir o rol de despesas essenciais que devem ser priorizadas na composição dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, suprimindo despesas que, embora caracterizadas como discricionárias, possuem caráter continuado”. O parecer contrapôs a essa prática a regra geral de que “as despesas relacionadas à conservação do patrimônio devem ser priorizadas na sua totalidade, seja para se conformar com os princípios norteadores da gestão fiscal responsável, seja para atender o art. 45 da LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal]”.
Os auditores não deixaram passar o descumprimento do Congresso à ordem do Supremo Tribunal Federal de dar “ampla publicização dos documentos embasadores da distribuição de recursos das emendas do relator-geral (RP-9) no período correspondente aos exercícios de 2020 e de 2021”. Como a imprensa já divulgou fartamente, o Parlamento não entregou as informações solicitadas e tem permitido que cada deputado e senador escolha se presta conta ou não sobre as indicações que fez. É um claro descumprimento ao que o Supremo determinou. “Tais providências, contudo, não foram adotadas, tanto que a relatora negou, em 18/3/2022, o pedido de prorrogação, por noventa dias, do prazo fixado para o Congresso Nacional dar ampla divulgação, em plataforma centralizada de acesso público, em atendimento à decisão do Plenário do STF de 10/11/2021”, diz o parecer.
A certa altura, o trabalho do TCU discorre sobre o papel do STF. “Ainda não há, todavia, manifestação do STF sobre a matéria no âmbito da ADPF 854”, diz, citando o número da ação no Supremo que discute a constitucionalidade do orçamento secreto. “A constitucionalidade dos referidos atos editados pelo Congresso Nacional também será apreciada no âmbito da ADPF em curso, o que contempla o dispositivo que autoriza o relator-geral a ‘apresentar emendas que tenham por objetivo a inclusão de programação ou o acréscimo de valores em programações constantes do projeto’, questão nuclear referente à sistemática das emendas RP-9 e da compatibilidade da LOA com o ordenamento constitucional vigente, assim como as normas gerais de finanças públicas.”
Do conjunto das análises, contudo, a que mais flagrantemente viola a Constituição e as leis nacionais está relacionada à aplicação de dinheiro público na área da saúde e na assistência social — para o que a Constituição exige o respeito a critérios objetivos estabelecidos em lei. Nos termos dos artigos 17 e 30 da Lei Complementar 141, o “rateio dos recursos” deve observar “as necessidades de saúde da população, as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde”. A lei diz também que a distribuição deve considerar “planos plurianuais, as leis de diretrizes orçamentárias, as leis orçamentárias e os planos de aplicação dos recursos dos fundos de saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Nada disso é cumprido no regime de emendas parlamentares, em que basta o deputado ou senador dizer onde quer colocar o recurso. Não há qualquer adesão ao planejamento dos gestores municipais, estaduais e federais da saúde. A alocação das verbas teria que demonstrar que cumpriu esses critérios definidos nos termos dessa legislação. Ou seja, os relatores e os autores de emendas teriam que demonstrar que seguem critérios definidos pelo próprio SUS. Mas, além da falta de transparência, não há qualquer critério na destinação das verbas.
A força desse argumento é que a exigência de critérios objetivos (que remete à própria obrigação da impessoalidade na administração pública) é literal da Constituição no caso do orçamento da seguridade social. A Lei Complementar 141 estabelece que a Comissão Intergestores Tripartite (formada por gestores municipais, estaduais e federais) deve pactuar os critérios de transferências de recursos fundo a fundo para estados e municípios e encaminhar para análise e deliberação do Conselho Nacional de Saúde. Essa situação está irregular desde 2012, quando a LC 141 foi aprovada — mas agora a situação está ainda mais agravada.
Nas palavras do TCU, “a utilização de emendas RP-9 para definir a alocação de recursos do orçamento da seguridade social […] não se demonstra compatível com os princípios, diretrizes e objetivos constitucionais que norteiam o SUS e o Suas [Sistema Único de Assistência Social]. Soma-se a isso a previsão do art. 195, § 10 da Carta Política, segundo o qual as transferências de recursos da União para os entes subnacionais aplicarem no SUS e no Suas devem observar critérios objetivos definidos em lei.”
O trabalho avança: “O art. 198 da Constituição Federal de 1988 dispõe que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com diretrizes próprias, das quais ganha relevo neste exame a participação da comunidade (inciso III). Não bastasse isso, o inciso II, do § 3º do artigo mencionado exige a observância de critérios objetivos para a distribuição dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos entes subnacionais, ‘objetivando a progressiva redução das disparidades regionais’.”
Os auditores destacam que a sistemática adotada, em 2021, para alocação de recursos por meio das emendas de relator-geral “não se demonstra guarnecida dessa amplitude jurídico-constitucional que rege as ações e serviços públicos de saúde que integram o SUS e as ações do Suas”. Além disso, “suprime – pela via oblíqua do orçamento – instâncias colegiadas consagradas na legislação infraconstitucional (Conselhos Nacionais de Saúde e Assistência Social) para definir prioridades e critérios de distribuição dos recursos de natureza federal, em consonância com o arranjo constitucional traçado para a seguridade social (art. 194, inciso VII), que privilegia a equidade inter-regional e interestadual”.
“Todavia, a constitucionalidade material da Resolução 2/2021-CN será apreciada em sede da ADPF 854, conforme consignado na decisão da ministra Rosa Weber de 8/4/2022, que reconheceu a existência de vínculo de conexão entre o conteúdo do Ato Conjunto 1/2021 e da Resolução em comento”, destacam os auditores ao fim do trecho.
Há um outro processo no TCU que analisa as fraudes no SUS no Maranhão. Nesse processo, não há análise sobre aspectos constitucionais, mas ele traz um ponto importante: a falta de fiscalização. “Ao se verificar o crescente avanço dos gastos por habitante no Maranhão, fica evidenciado o descontrole por parte do Ministério da Saúde quanto à aplicação de recursos viabilizados mediante emendas parlamentares, vez que se verifica a ocorrência sistemática de acréscimos significativos nos gastos de saúde em municípios daquele ente sem uma aparente explicação razoável”, diz um trecho da instrução de auditores. Com base na análise, foi proposto ao ministro Vital do Rêgo, do TCU, que concedesse uma liminar para barrar as liberações de recursos a municípios que tiveram elevação abrupta de dados de produção depois do ano de 2019. O pedido não foi analisado ainda.
O saldo é que, no regime regido pelo orçamento secreto, o Executivo e o Legislativo, em comum acordo, estão distribuindo verbas em desacordo com a Constituição e com a lei complementar que trata da distribuição de recursos para o SUS sem fiscalização, o que possibilita o desvio de recursos públicos. Isso mostra que, ao contrário do alegado pelos parlamentares, de que as emendas são importantes para distribuir as verbas na saúde, a realidade é o oposto disso. O Supremo tem a faca e o queijo na mão para corrigir os rumos do orçamento.