Os autores do estudo alertam para os riscos à saúde pública
Queimadas e incêndios florestais já tornam a qualidade do ar
nociva aos moradores da região da Amazônia Legal e do Centro-Oeste em pelo
menos metade dos dias do ano. Segundo estudo publicado nesta sexta-feira
(28/07), esse tipo de poluição afeta cerca de 20 milhões de brasileiros – 10%
da população do país e mais da metade dentre os que vivem nessas regiões
analisadas.
O estudo foi realizado por pesquisadores da Universidade do
Estado do Mato Grosso (Unemat), da Fundação Oswaldo Cruz do Piauí, da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade de São Paulo (USP) a
partir de dados obtidos do satélite do Centro Europeu de Previsões
Meteorológicas a Médio Prazo ao longo de uma década – de 2010 a 2019 – e
publicado no periódico científico Cadernos de Saúde Pública.
Considerou-se como índice alto de poluente quando a medição
indicou um nível superior a 15 microgramas de material particulado – os
resíduos da queima, dispersos no ar – por metro cúbico. Assim, seguiu-se a
recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que indica que níveis acima
disso já representam risco ao ser humano.
“Usamos a referência da OMS porque para a legislação
brasileira definida pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente o limite é de 60
microgramas por metro cúbico. E [para isso] não há base científica”, diz uma
das autoras da pesquisa, a doutora em saúde pública Eliane Ignotti, professora
na Unemat. “Lembramos que há vários estudos, inclusive no Brasil, em que são
observados impactos à saúde com limites muito mais baixos.”
“É interessante observar que en muitas localidades (…) estes
níveis elevados de poluição atingem 100% dos dias no período de estiagem”,
acrescenta outra das autoras, a também doutora em saúde pública Beatriz Alves
de Oliveira, pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz.
Se a pesquisa identificou que mais da metade da população das
regiões está exposta a níveis acima do patamar considerável aceitável pela OMS
em pelo menos metade do ano, ao analisar os pontos mais excessivos os números
são ainda mais preocupantes.
“Estamos lidando com
dados estimados, que alcançam frequentemente níveis acima de 200 microgramas
por metro cúbico, até 800, 1.000”, salienta Ignotti. Ela afirma que “estamos
falando de níveis extremamente elevados quando comparados aos limites
recomendados pela OMS”.
Os autores do estudo alertam para os riscos à saúde pública.
“O percentual de dias com má qualidade do ar é um indicador de exposição à
poluição atmosférica que identifica as áreas potenciais de risco para a saúde
humana a região”, explica a professora.
Entre os problemas mencionados pelos pesquisadores estão “o
aumento do número de óbitos e internação por doenças cardiopulmonares, o
aumento de atendimentos ambulatoriais, o aumento de prevalência de asma, baixo
peso ao nascer e até de câncer de pulmão”.
Ou seja, além de piorar a qualidade de vida da população,
isso significa também aumentar a demanda e criar sobrecarga no sistema de
saúde. “Milhares de internações e de óbitos poderiam ser evitados se os níveis
de poluição não fossem os verificados nessa região”, diz ela.
Quarenta cigarros
A reportagem da DW consultou especialistas alheios ao estudo
para tentar mensurar o impacto dessa poluição tanto nas populações quanto no
ecossistema da região.
Chefe do Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, a bióloga e
fisiopatologista Mariana Veras corrobora que os riscos são muito altos para a
saúde humana quando pessoas são expostas a níveis altos de poluentes com
frequência.
“Há efeitos leves, como uma irritação nos olhos, garganta,
tosse, e também efeitos muito graves, como maior incidência de infarto,
acidente vascular cerebral, bronquite, agravamento de asma e doenças que se
desenvolvem com situações de longo prazo”, comenta. “Hoje há estudos que
mostram associações de poluição do ar e maior risco de Alzheimer, diabetes,
obesidade e outras doenças crônicas.”
Publicada em 2021, uma pesquisa coordenada pela Universidade
Monash, da Austrália, com participação de cientistas da USP, apontou que
incêndios florestais já são a causa de hospitalizações de 47 mil brasileiros
por ano. Crianças e idosos estão entre os mais afetados.
Veras recorda de um estudo realizado anos atrás por seu
laboratório buscando comparar os danos causados pela poluição de São Paulo,
cujo ar tem uma média de 25 microgramas de partículas do tipo por metro cúbico,
com os malefícios do cigarro. “Concluímos que duas horas no trânsito [da
capital paulista] equivalem a fumar dois cigarros”, conta. Ou seja: um cigarro
por hora de exposição. “Mas quem mora perto de queimadas tem uma concentração
[de partículas poluentes no ar] muito maior.”
Fazendo uma analogia, nos casos extremos de localidades da
Amazônia e do Centro-Oeste onde a poluição chega a 1.000 microgramas por metro
cúbico, isso significaria fumar 40 cigarros a cada hora de exposição.
A especialista explica que as partículas de poluição
decorrentes de queimadas e incêndios florestais têm um potencial de danos ao
organismo que pode ser ainda pior do que a poluição das cidades, composta por
outros materiais. “São características da composição, principalmente do que a
gente chama de material particulado, formado pela parte incompleta da combustão
da biomassa, da madeira, da floresta. São partículas muito pequenininhas,
capazes de entrar em nosso pulmões, chegar nas regiões mais profundas. Apresentam
mais risco para a saúde”, diz.
Natureza e agricultura
Pesquisador do Instituto Ambiental de Estocolmo, o biólogo
Mairon Bastos Lima também vê com preocupação o impacto que essa poluição
decorrente do fogo nas florestas pode causar nos próprios ecossistemas da
Amazônia Legal e do centro-oeste.
As consequências vão do desequilíbrio ambiental a prejuízos
para a agricultura. “Mais estudos são necessários para compreender melhor esses
impactos, mas é seguro dizer que tamanha quantidade de fumaça e poluição não é
inócua”, argumenta.
“Por exemplo, pode haver mortandade de certos insetos, com
consequências ainda pouco compreendidas. Alguns insetos, como as abelhas, são
chave para processos de polinização, além da produção de mel”, diz. “Por outro
lado, há famílias de insetos chamados de pirófilos por gostarem da fumaça e
cujos números se elevam nessas situações. Esses insetos podem incluir tipos de
gafanhotos, com consequências [danosas] para a agricultura.”
Lima, que atualmente está em pesquisa de campo no Pará, contar ter ouvido de locais que o aumento das queimadas parece estar relacionado ao crescimento das populações de potó, um inseto que pode causar queimaduras severas na pele de humanos. “Mas ainda estamos no escuro em relação a isso, precisamos de mais estudos”, salienta.
Onde já há certezas são
em pesquisas que mostram, lembra Lima, que a recorrência de fumaça “reduz a
resiliência da floresta, isto é, sua habilidade de se regenerar”. “E já sabemos que o
desmatamento e as queimadas afetam negativamente o regime de chuvas na Amazônia
e no seu entorno, e que as chuvas são essenciais para a regeneração do bioma. É
o ciclo vicioso que está nos levando para o chamado ponto de não-retorno na
Amazônia, quando esse ecossistema já não gerará chuva suficiente para sua
própria manutenção”, acrescenta.
“Estamos brincando com fogo em todos os sentidos do termo,
pois as consequências disso seriam catastróficas. É fundamental que deixemos de
ser inconsequentes”, alerta o biólogo.