Correção do problema pode pressionar Orçamento, pois seria necessário reduzir outros gastos.
A atual equipe do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) admitiu em nota que houve insuficiência orçamentária no fim de 2022 — em outras palavras, não havia como pagar todas as parcelas do benefício previstas para aquele ano.
As despesas foram quitadas com o orçamento já do governo Lula e, na visão de técnicos, parecem ter gerado uma bola de neve. No fim de 2023, nova insuficiência orçamentária obrigou a pasta a empurrar gastos com o seguro-desemprego para o começo de 2024, num montante calculado até agora em R$ 5,66 bilhões.
Os números foram extraídos pelo jornal Folha de S. Paulo do painel Siga Brasil. Após serem procurados pela reportagem, o Tesouro Nacional, a Secretaria de Orçamento Federal e o MTE fizeram uma reunião técnica em 29 de fevereiro para discutir o problema.
Depois do encontro, o Ministério do Planejamento e Orçamento disse em nota que os órgãos estão em tratativas para a “correção dos procedimentos de execução dessas despesas”, mas não detalhou o diagnóstico nem quais soluções serão adotadas.
O MTE informou que os segurados receberam os pagamentos em dia e não foram afetados, mas não explicou as razões da insuficiência orçamentária. A pasta disse que “envida esforços” para executar todas as obrigações e solicitará novos créditos, caso seja necessário.
O Tesouro foi procurado em 27 de fevereiro, mas preferiu não responder.
A correção da execução dessas despesas pode gerar pressão no Orçamento, pois seria necessário reduzir outros gastos. Por isso, pessoas envolvidas nas discussões afirmam que a solução não virá “da noite para o dia” e demandará gradualismo.
A natureza do problema está na cronologia da execução orçamentária.
A Lei de Finanças Públicas diz que o empenho da despesa (primeira fase do gasto) deve ocorrer no momento da criação de uma obrigação de pagamento. Já a liquidação (segunda fase) consiste na verificação do direito adquirido de quem vai receber o dinheiro.
Ao homologar um pedido de seguro-desemprego, o governo se compromete a pagar de três a cinco parcelas ao trabalhador. Para a CGU (Controladoria-Geral da União), esse reconhecimento já equivale à liquidação da despesa, e o ministério deveria empenhar e liquidar o valor de todas as prestações — ainda que o direito de saque seja exercido só nos meses seguintes.
O MTE tem fugido desse roteiro e empenhado as despesas apenas no mês de pagamento. Na prática, isso permite ao ministério contratar um gasto sem registrá-lo no Orçamento, enquanto o espaço disponível é usado para outras ações. Em mudança de governo, a conta fica para o sucessor.
O problema foi abordado pela CGU em auditoria nas contas do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) de 2021 que indicou R$ 2,01 bilhões em benefícios homologados sem o empenho e inscritos em restos a pagar para o ano seguinte.
A cifra era maior que a dotação disponível (R$ 343,4 milhões). Ou seja, R$ 1,67 bilhão em despesas contraídas nem sequer possuíam autorização legislativa, “em confronto às regras orçamentárias”, diz o relatório.
A CGU atribuiu a irregularidade à decisão do governo Bolsonaro de reduzir as dotações do seguro-desemprego na reta final de 2021 — ano marcado por apelos do centrão por liberação de emendas e pela pressão do então presidente para turbinar gastos sociais de olho nas eleições de 2022.
Segundo os auditores, entre 30 de novembro e 31 de dezembro de 2021, a verba para o benefício sofreu um corte de R$ 3,76 bilhões.
“A gestão do FAT, ao não adotar providências para garantir a disponibilidade orçamentária para fazer frente a parte das despesas do seguro-desemprego homologadas em 2021, incorreu em ato de gestão em desconformidade com regras legais e constitucionais”, diz o relatório. Segundo a CGU, os fatos narrados ainda aguardam julgamento no TCU (Tribunal de Contas da União).
O ex-ministro Onyx Lorenzoni, que chefiou o Ministério do Trabalho de julho de 2021 a março de 2022, disse em nota que a execução orçamentária sempre acompanhou o fluxo de pagamento. Ele atribuiu à PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) o entendimento de que recursos previstos no Orçamento são “aqueles destinados ao pagamento das despesas do exercício de pagamento”.
Para o ex-ministro, o modelo da CGU tornaria a tarefa “bastante complexa”.
Seu sucessor no cargo, o ex-ministro José Carlos Oliveira, foi procurado, mas não respondeu.
Os relatórios oficiais mostram que as despesas pendentes de 2021 foram executadas com o Orçamento de 2022, mas a própria contabilidade do FAT apontou outra distorção. Elas deveriam ter sido classificadas como “Despesas de Exercícios Anteriores” —o que passou a ser feito a partir de 2023 e permitiu o rastreio dos valores no painel do Siga Brasil.
As DEAs, no jargão orçamentário, são um procedimento de exceção que os gestores podem adotar para empenhar obrigações de anos anteriores que não foram processadas a tempo ou para as quais não havia dotação suficiente.
Seu uso não configura, por si só, uma irregularidade. O incomum é quando as DEAs tomam uma proporção significativa como agora. Elas somaram R$ 36,4 bilhões em 2022 e alcançaram R$ 37,9 bilhões no ano passado, em valores já atualizados. São cifras maiores até do que o registrado em 2015, ano de regularização das chamadas “pedaladas fiscais”.
Além de parte do seguro-desemprego, o MTE também está classificando como DEA o gasto integral do abono salarial. O problema tem origem semelhante.
Até 2021, o calendário de pagamento do abono ia de julho a junho do ano seguinte, e o ministério reconhecia a despesa apenas no pagamento, rachando o empenho em dois exercícios.
Em duas auditorias, de 2020 e 2021, a CGU disse que o procedimento era inadequado e recomendou o empenho total dos valores no momento em que o direito ao abono é reconhecido.
Como não havia reserva suficiente no Orçamento de 2021 para acatar a medida, o governo decidiu adiar todo o calendário para 2022, o que não só evitou o estouro do teto de gastos como também liberou R$ 7,5 bilhões para turbinar emendas. Técnicos à época viram a mudança como uma espécie de pedalada.
Desde então, o abono salarial é classificado como DEA e pago com dois anos de defasagem (em 2024, recebe o benefício quem trabalhou com carteira assinada em 2022).
A CGU disse em nota que, desde 2021, não foram realizadas outras auditorias sobre o tema. “Dessa forma, a emissão de juízo sobre a adequação dos procedimentos adotados pelo MTE e sobre os fatos ocorridos a partir do período do exercício de 2022 requer nova auditoria.”
O órgão afirmou ainda que “não há recomendação que trate especificamente de registro de pagamento de seguro-desemprego como despesas de exercícios anteriores”.