Cada democracia estabelece os seus limites. A democracia brasileira tem limites e um deles é não pôr em dúvida as próprias instituições democráticas
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), de incluir o multibilionário Elon Musk nas
investigações das milícias digitais, está fundamentada e deve ser compreendida
em um contexto de ameaças às instituições e da suposta tentativa de golpe de
Estado envolvendo o 8 de janeiro. O entendimento é de duas juristas entrevistadas
pela Agência Brasil.
Após ser atacado por Musk, Moraes incluiu o dono da
plataforma X, antigo Twitter, no inquérito que investiga os supostos grupos
criminosos que se articulariam na internet para promover ataques às eleições e
às instituições brasileiras. No último fim de semana, ele iniciou uma cruzada
contra o Judiciário brasileiro personificado no ministro Moraes.
O também dono da Tesla, uma das principais fabricantes de
veículos elétricos do mundo, acusa o magistrado de censurar a plataforma e repete
o discurso de parte dos investigados pelo dia 8 de janeiro. De acordo com essa
tese, o Brasil viveria uma onda de cerceamento da liberdade de expressão.
A professora de direito constitucional da Universidade
Estadual de Pernambuco (UPE) Flávia Santiago destacou que não existe, em
nenhuma democracia do mundo, uma liberdade de expressão ilimitada e, por atuar
dentro do Brasil, a plataforma está sujeita às leis e decisões judiciais do
país.
“Cada democracia estabelece os seus limites. A democracia
brasileira tem limites e um deles é não pôr em dúvida as próprias instituições
democráticas. Isso faz parte da nossa proposta de democracia que está na Constituição
de 1988”, explicou.
Os perfis suspensos que Musk defende estão envolvidos nos
inquéritos que apuram crimes como a abolição violenta do Estado democrático de
direito, que está tipificado na Lei 14.197 de 2021.
A professora Flávia Santiago acrescentou que a decisão de
Moraes está nesse contexto de ameaças às instituições, situação que tornou o
STF mais reativo.
“A gente tem, por isso, um tribunal sob pressão. Temos ainda
o poder de mobilização desses discursos em relação à população e aos
interessados, aos grupos políticos envolvidos, em especial quando você está
tensionando as instituições. É isso que eles estão fazendo e o Supremo está
numa situação muito difícil. Ele se tornou o fiador das instituições
democráticas, que é o que as cortes constitucionais fazem”, afirmou.
Não é a primeira vez que Elon Musk se manifesta diretamente
sobre a política interna de países da América do Sul. Em julho 2020, em um
debate no X sobre a acusação de que os Estados Unidos estariam por trás da
destituição do presidente boliviano Evo Morales, ocorrida em 2019, Musk
afirmou: “vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”.
Conexão com milícias
A advogada Tereza Mansi, da Associação Brasileira de Juristas
Pela Democracia (ABJD), também avalia que a decisão de Moraes está fundamentada
uma vez que ele tipifica os possíveis crimes praticados pelo dono do X, entre
eles, obstrução de justiça, desobediência a decisões judiciais e incitação ao
crime.
“A atuação dele reforça a conexão entre as milícias digitais
e as plataformas digitais. Porque poderia ser o contrário. Ele poderia estar
trabalhando para coibir essas condutas dentro da plataforma e ele está fazendo
o inverso”, comentou.
Para a jurista, ao afirmar que não respeitará a decisão
judicial, o que é crime de acordo com o artigo 330 do Código Penal, ele está
incentivando as pessoas a continuarem promovendo a ruptura democrática na
internet.
“Se eles tiveram aquela pena de conta suspensa e ele [Musk],
arbitrariamente, reativa essas contas, ele está sim incentivando as pessoas a
continuarem cometendo crimes. Há essa conexão (entre o pronunciamento do Musk e
os crimes investigados pelo STF)”, completou Mansi.
Ainda segundo a especialista, a liberdade de expressão, no
Brasil, não permite discurso de ódio, discriminação, racismo ou notícias falsas
que coloquem em risco a democracia. “Como a gente não tem censura prévia, a
pessoa pode até falar, mas ela vai arcar com as consequências das falas dela
posteriormente”, acrescentou.
Desafio à Constituição
Em nota, a ABJD afirmou que a atitude do bilionário
representa um grave desafio à ordem constitucional e à independência do Poder
Judiciário, além de configurar ingerência estrangeira nos assuntos internos do
Brasil.
“Em um contexto em que a disseminação de informações é um
elemento essencial para o funcionamento saudável da democracia, é imperativo
que a circulação dessas informações seja regida por princípios democráticos e éticos”,
diz a entidade.
A coordenadora da Executiva Nacional da ABJD, Tereza Mansi,
relembrou que os perfis já estavam suspensos há algum tempo e que a plataforma
do Musk tem participado dos grupos de trabalho no Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) para encontrar formas de combater a desinformação que coloque em risco a
integridade do processo eleitoral brasileiro.
“O ‘X’ têm participado das discussões de como coibir a instrumentalização criminosa que vem acontecendo nas redes sociais. Porque é através dela que as pessoas se organizam e se organizaram, por exemplo, pelo 8 de janeiro”, completou.
A ABJD lembrou ainda que Musk enfrenta acusações de permitir
a circulação do discurso de ódio na plataforma X. “Relatos de crescimento de
conteúdo racista e extremista desde que assumiu a direção da rede social X
levantam sérias questões sobre seu compromisso com valores democráticos
fundamentais”, acrescentou.
De acordo com o Centro de Combate ao Ódio Digital (CCDH),
aumentou em 202% a média diária de publicações com palavras racistas e 58% a
com termos homofóbicos se comparado com antes da aquisição da plataforma pelo
multibilionário. Musk processou o CCDH nos Estados Unidos alegando que os
relatórios são falsos, mas perdeu a ação na 1ª instância. O “X” prometeu recorrer.
Regulação das
plataformas
O ataque de Musk contra Moraes reacendeu o debate, no Brasil,
da regulação das plataformas. Lideranças ligadas ao governo federal argumentam
que a medida é necessária para disciplinar melhor o funcionamento desses ambientes
digitais no Brasil. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PDS-MG),
acrescentou que a regulamentação é inevitável.
O tema chegou a ser pautado no ano passado. De acordo com o
presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), o projeto não avançou por
pressão das grandes empresas de tecnologia, as chamadas big techs.
Por outro lado, a acusação de Musk reacendeu as críticas da
oposição à condução das investigações sobre o 8 de janeiro. Lideranças
oposicionistas da Câmara e do Senado se reuniram para discutir estratégias de
atuação no Parlamento.