No rol de queixas, estão também xingamentos, assédios e roubos, que têm feito alguns dos 180 mil agentes abandonarem serviço, exigindo reposição de recenseadores por parte de órgão (Por Arthur Leal e Vittoria Alves)
Xingamentos, assédios, roubos e até ameaças armadas têm feito
alguns dos 180 mil agentes do Censo abandonarem o trabalho, pouco mais de duas
semanas depois de terem começado as entrevistas de campo, que vão até 31 de
outubro. Os desistentes dizem que houve falha na divulgação da pesquisa pelo
governo federal. O instituto admite que há pedidos de desligamento, mas
desistências são comuns e substitutos são escolhidos em um cadastro extra,
feito para essa eventualidade. Os que jogaram a toalha dizem que notícias
falsas, como a de que assaltantes têm usado coletes de recenseadores, contribuem
para aumentar o receio das pessoas em abrir a porta de suas casas.
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Essa semana, em Belo Horizonte, Augusto César Carvalho foi
vítima de racismo no seu primeiro dia de trabalho. No grupo de troca de
mensagens de um condomínio no Sagrada Família, bairro onde vive há 30 anos, foi
compartilhada a sua foto, para que os moradores soubessem quem iria
entrevistá-los. Uma moradora comentou que Augusto, que é negro, tinha “pinta de
assaltante”. O caso foi denunciado pelos outros vizinhos, em outros grupo de
conversas por aplicativo. Augusto conta que já vinha enfrentando resistência e
grosseria antes do insulto.
Fui à Delegacia
Especializada de Crimes Raciais e fiz um boletim de ocorrência. Disseram que a
moradora que expôs o caso será intimada a depor, para que diga quem foi que
disse aquilo — relatou.
Segundo Augusto, é nos prédios que mais pessoas se recusam a
cumprir a lei e participar (a multa prevista para quem não responder é de dez
salários mínimos):
Sofri um traumatismo craniano em 2011. Fiquei dois meses em
coma. Tive de reaprender a falar e a andar. Em 2014, voltei ao ensino
fundamental e entrei na UFMG em 2018. Estou correndo atrás — disse.
O IBGE disse que vai informar o caso à Advocacia-Geral da
União para a adoção de medidas legais.
A estudante de jornalismo Bruna Mecchi, de 22 anos, se
surpreendeu com a falta de cordialidade, mesmo em Altinópolis, município com
pouco mais de 15 mil habitantes no interior de São Paulo, onde trabalhou por
duas semanas antes de desistir.
Bateram a porta na minha cara, gritaram comigo, fui xingada de golpista. Tenho colegas que foram recebidos com vassourada e baldes de água. Há relatos de dispositivos móveis de coleta (celular adaptado usado pelos agentes) roubados, de assédio e de dificuldade de acesso em favelas. É um trabalho perigoso e desvalorizado — avalia.
Em Maceió, a pedagoga Duanne Micaely, de 25 anos, disse que
falta assistência do IBGE à segurança da equipe. Nos primeiros dias de
trabalho, Micaely enfrentou uma chuva que deixou desabrigados no bairro onde
mora e fez o roteiro de entrevistas sem ter uma capa de chuva. Para ela, a
capacitação técnica também deixou a desejar.
Trabalhei encharcada e
tendo que voltar várias vezes em casa para trocar de roupa — conta Micaely,
acrescentando que os recenseadores não recebem auxílio para transporte e
alimentação. — Fizeram um treinamento com supervisores contratados sem
parâmetro nenhum para ensino, que não explicavam bem como deveríamos agir.
A insegurança na área de Barro Duro, onde cresce o tráfico de
drogas e ela também fazia entrevistas, foi o que pesou na decisão de deixar
para trás o Censo.
Fui parada por um
homem que perguntou o que eu estava fazendo — lembra. — Uma colega foi recebida
numa casa num bairro vizinho com um homem apontando uma pistola. Ele chegou a
destravar a arma. Estava pronto para atirar.
Expansão das favelas
A insegurança cresce com a expansão das áreas urbanas
informais. Um estudo do Mapbiomas mostra que, de 1985 a 2020, aumentou em cerca
de 100 mil hectares a área das favelas no Brasil, mais de três vezes o tamanho
de Salvador. O geógrafo Júlio Cesar Pedrassoli, um dos coordenadores de
Infraestrutura Urbana do grupo, explica que esse aumento desordenado torna mais
complexo o trabalho dos recenseadores.
As pessoas não moram
nas favelas porque elas querem. O que os recenseadores estão sentindo na pele é
que a gente nem chegou perto de resolver esses problemas nas últimas quatro
décadas.
O IBGE afirma que conta com satélites e dados do poder
público local para estimar as informações de áreas de difícil acesso.
São áreas onde a
confiabilidade dos dados de contagem populacional vai ser sempre menor. A
ausência do Estado dificulta a ação do próprio Estado resume Pedrassoli.
Uma advogada de 25 anos da Baixada Santista, no litoral de
São Paulo, que foi trabalhar no Censo por estar desempregada, pensa em pedir
desligamento assim que terminar o primeiro setor de entrevistas.
Saio de casa pensando:
“Quantas vezes será que serei maltratada hoje?” — conta ela, que não quis se
identificar.
Uma mulher mandou a advogada “esperar sentada” e um homem se irritou ao ser perguntado sobre o sexo. “Você não está vendo? O que você acha ? Não enxerga não?” foi a resposta.
Porteiro diz quem é bravo
Para colher entrevistas em um condomínio de Curitiba onde
muitos se negam a atendê-la, Maria Eduarda Silva recebeu do porteiro
orientações sobre quem procurar por último, pelo potencial de agressividade:
Hoje (ontem) mesmo um morador trancou a porta na minha cara.
Não pude nem explicar o que é Censo.
O IBGE definiu as dificuldades como rotineiras nos censos e
nas pesquisas amostrais, assim como nas pesquisas domiciliares de outras
instituições, e afirmou que a tendência é que “sejam vencidas” até o final do
Censo. “Tanto a rotatividade quanto esses episódios de roubos e furtos são
pontuais, num universo de mais de 180 mil servidores temporários”, disse o
instituto, em nota.
Sobre uma possível falha na divulgação da pesquisa, o IBGE reforçou
que uma campanha publicitária é veiculada desde o início do Censo 2022, com
cartazes, spots de rádio e TV, músicas e ações nas redes sociais.