FÁBIO MOZART - Radialista e Cordelista
Não sei porque, jamais saberei e fico absolutamente
bestificado: o artigo 283 do Código Penal, que trata do charlatanismo, não pega
nos pastores “de resultado”, os que simulam falar diretamente com Deus e se
aproveitam da credulidade do populacho. É crime contra a incolumidade pública,
mas a bronca só alveja o Pai de Santo ou o médium vidente sem procedência no
divino oficial e aceito. Os meus seis assíduos leitores entendem que eu sei o
motivo dessa diferenciação no tratamento dos mesmos crimes. O distinto senhor
já ouviu falar em racismo estrutural. Verbete no meu dicionário de colete:
“Racismo estrutural é a formalização de um conjunto de práticas institucionais,
históricas, culturais e interpessoais dentro de uma sociedade que
frequentemente coloca um grupo social ou étnico em uma posição melhor para ter
sucesso e ao mesmo tempo prejudica outros grupos de modo consistente e
constante.” Eu sei, mas digo que não sei e me reservo o direito de permanecer
calado enquanto lembro um velho episódio ocorrido nos idos de 1970 na velha
cidade Itabaiana do Norte, antiga aldeia dos índios Cariris.
Antes, tento explicar a uniformidade dos sons no título desta
croniqueta. É que eu sou viciado em compor folhetos da literatura de cordel e
acabei dependente das rimas. Voltando ao caso, deu-se em 1972 na minha cidade
Itabaiana, como já foi anunciado. Estava a cidadezinha posta na sua natural
serenidade e placidez interiorana quando apresentou-se ao porteiro e dono do
único hotelzinho um senhor de paletó preto, pasta 007, chapéu de massa e
portando um maço de “reclames” onde se informava que o supracitado fulano
exercia a espectral função de médium vidente, escrevente, auditivo e sensitivo,
com capacidade comprovada de entrar em contato com espíritos e entidades,
estando à disposição da “grata e gentil” população do lugar para viajar no
plano espiritual das pessoas, garantindo perceber, discernir ou pressentir o
passado, o presente e o futuro dos consulentes, mediante parco emolumento
destinado às necessidades básicas do sensitivo que se intitulava “professor
Kardec da Silva”.
Na hora morta da noite, o médium recebeu a visita de distinto
senhor, comerciante do ramo de amendoim e algodão em grosso, interessado em
saber do oráculo se a safra de algodão seria alentadora, aproveitando para
consultar os prognósticos do amor. O homem, casado e membro da Igreja Batista,
andava arrastando as asas pecantes para uma recente viúva. Aproveitou para
saber se a fulana aceitaria sua corte. “Em matéria de amor, o Espírito anuncia
que você vai no bom caminho”, assegurou o professor Kardec da Silva.
Confiante, o crente meteu os peitos, nos negócios de compra e
venda de algodão e no galanteio. Teve sérios prejuízos como atravessador e
acabou recebendo da viúva uma carta onde ela sentia informar, entretanto, se
ele fosse o único homem sobre a terra, preferia morrer sem voltar a abrir sua
dobradiça de viúva efervescente. O frustrado consultador da mediunidade
registrou boletim de ocorrência na delegacia. O delegado, um sargento muito
chegado à ignorância juramentada, mandou prender o médium vidente por prática
de curandeirismo, rituais satânicos e exploração da credulidade pública. Na
qualidade de rábula, meu pai impetrou habeas corpus em favor do encadeado
médium, sob o argumento de que as experiências mediúnicas do seu cliente eram
apenas isso, experiências, e que ele não garantia os resultados. Podia dar
certo, podia dar errado, que isso de se interrogar os espíritos era uma coisa
muito nebulosa.
O médium acabou sendo posto em liberdade, o senhor do
amendoim foi afastado da igreja Batista por ter procurado “trabalhos
espirituais malignos”, a viúva mandou fazer um despacho com Luiz do Ponto,
filho de Oxossi, amaldiçoando o sedutor que ela detestava, e meu pai escreveu
um livro chamado “Memórias de um rábula”, onde ele conta esse e outros
episódios que vivenciou, defendendo os injustiçados na comarca de Itabaiana por
mais de quarenta anos.
AUTOR - FÁBIO MOZART