Por-FLÁVIO FERREIRA, MATEUS VARGAS E GUILHERME GARCIA
***ARQUIVO***BRASÍLIA, DF, 31.03.2022 - O presidente Jair Bolsonaro (PL) participa de cerimônia de cerimônia de despedida dos ministros que deixam o governo para concorrerem as eleições e de posse dos novos ministros que os substituem, no Palácio do Planalto, em Brasília. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)
ARAGUATINS, TO, BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) -
Licitações de pavimentação afrouxadas pela estatal federal Codevasf para escoar
emendas parlamentares no governo Bolsonaro já resultam em obras precárias,
paralisadas e superfaturadas.
A Codevasf, entregue por Jair Bolsonaro (PL) a partidos do
centrão em troca de apoio político, cresceu em contratos no atual governo e
expandiu seu foco e sua área de atuação --tudo isso sem planejamento e com
controle precário de gastos.
Ao mesmo tempo, a estatal se transformou num dos principais
instrumentos para escoar a verba recorde das emendas, distribuídas a deputados
e senadores com base em critérios políticos e que dão sustentação ao governo no
Congresso Nacional.
Esse fluxo de verbas e obras ocorre por meio de uma manobra
licitatória que deixa em segundo plano o planejamento, a qualidade e a
fiscalização, abrindo margem para serviços precários, desvios,
superfaturamentos e corrupção.
A região norte do estado do Tocantins, conhecida como Bico do
Papagaio, foi destinatária de contratos de pelo menos R$ 11 milhões da Codevasf
para pavimentação.
As obras na região contam com recursos de emenda parlamentar
por indicação do senador Eduardo Gomes (PL-TO), na modalidade emenda de
comissão, no caso a Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado.
No município de Araguatins (a 620 km de Palmas), as obras de
asfaltamento da estatal contêm trechos tão precários que expõem os motoristas
ao risco de acidente.
Os moradores relatam que o pavimento aplicado há poucos meses
amolece e afunda nos dias de muito calor.
Os moradores reclamam que o pavimento amolecido em um trecho
asfaltado pela empreiteira Construservice faz com que motociclistas caiam no
chão ao estacionar seus veículos, uma vez que os pés das motos entram no
asfalto, e eles perdem o equilíbrio.
A comerciante Francielle Rodrigues, 30, que vende salgados na via asfaltada pela Codevasf, conta que nos dias de altas temperaturas é comum ter que ajudar clientes a se levantarem quando eles resolvem parar suas motos próximas a sua mesa de quitutes.
"Esse asfalto não tem quatro meses e até hoje derruba
moto. Quando esquenta ele amolece, e o pé da moto afunda", diz.
Em razão dessa situação é possível ver pequenos furos ao
longo das margens do asfalto em várias ruas, como se uma máquina tivesse
picotado o pavimento em suas bordas.
"Quando passa caminhão pesado também afunda. Parece que
o asfalto não endureceu direito", diz o mecânico Gustavo Silva Rocha, 31.
Também no Bico do Papagaio, no município de Sítio Novo do
Tocantins (627 km de Palmas), há contratos de pavimentação do tipo bloquetes de
concreto também a cargo da Construservice.
Os moradores de Macaúba reclamam que a obra na via de acesso
ao povoado foi paralisada há mais de um mês, deixando grandes espaços entre os
trechos já executados.
A estrada passa em frente à propriedade rural onde vive o
vaqueiro Ronilson Rodrigues de Sá, 42. "Quando chove, a água que desce da
parte alta estraga os pedaços que eles já fizeram", afirma. "
Em nota, a Construservice admitiu os problemas nos dois
municípios do Tocantins e afirmou que eles serão resolvidos a partir de maio.
Já em contratos assinados pela Codevasf no estado de Alagoas
em 2019 e 2020, fiscalizadores da CGU (Controladoria-Geral da União)
encontraram superfaturamentos, pagamentos indevidos, serviços em duplicidade e
obras inacabadas.
O valor total das irregularidades somou R$ 4,3 milhões.
Algumas das vias examinadas estão em Barra de São Miguel,
município no litoral alagoano que tem como prefeito Benedito de Lira (PP-AL),
pai do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Como a Folha mostrou em dezembro passado, Barra de São Miguel
foi beneficiada com a destinação de R$ 4,7 milhões em 2021 e de R$ 5,8 milhões
em 2020 por meio das chamadas emendas de relator.
Com apenas 8.400 habitantes, é o município alagoano que mais
recebeu recursos deste tipo de emenda proporcionalmente à sua população.
Em Pernambuco, no primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019,
uma concorrência de pavimentação destoou do padrão em razão de a pregoeira
(autoridade responsável pela disputa online) ter desclassificado 18 das 19
licitantes.
A única que sobrou no páreo, a Liga Engenharia Ltda, venceu
com proposta mais cara para os cofres da Codevasf. Uma das desclassificadas
recorreu ao TCU (Tribunal de Contas da União), que julgou as eliminações como
irregulares.
Após o caso chegar ao tribunal de contas, a empreiteira deu
um desconto no preço que levou a uma economia de R$ 1,3 milhão para a estatal.
A Liga Engenharia tem como um de seus sócios Pedro Garcez de
Souza, que é cunhado de um sobrinho do senador Fernando Bezerra Coelho
(MDB-PE), ex-líder do governo Bolsonaro no Senado.
Em um relatório da CGU relativo a contratos de pavimentação
em Pernambuco, os fiscais afirmaram que causava estranheza o fato de a Liga
Engenharia somente participar de licitações promovidas pela Codevasf.
"Tal preferência exclusiva pode indicar falha nos
controles internos das licitações", segundo o levantamento da
controladoria, em um capítulo em que relata a "ausência de procedimentos
formais para coibir e identificar práticas ilegais entre as empresas
participantes de pregões eletrônicos."
A Folha esteve em Petrolina (713 km de Recife) no fim do ano passado e encontrou pavimentação precária decorrente de um contrato da Codevasf abastecido com verbas destinadas pelo senador Bezerra Coelho, que ganhou até apelidos.
A obra federal é chamada de farofa ou Sonrisal, em referência
ao esfarelamento dos trechos pavimentados, que derrete com o forte calor, gruda
nos calçados dos moradores e, quando se quebra em pedaços, começa a esfarelar.
A obra foi executada pela empresa maranhense Enciza
Engenharia Civil Ltda.
Após a publicação da reportagem, o então prefeito de
Petrolina, Miguel Coelho (União-PE), filho do senador, reconheceu a má
qualidade da pavimentação e culpou a empreiteira do Maranhão pela precariedade
do serviço. Agora Miguel Coelho é pré-candidato ao governo pernambucano.
Como mostrou a Folha na semana passada, a empreiteira
Engefort, que lidera contratos recentes da Codevasf para pavimentação, ganhou
diferentes licitações nas quais participou sozinha ou na companhia de uma
empresa de fachada registrada em nome do irmão de seus sócios.
Em Imperatriz (MA), sede da Engefort, a principal obra feita
pela construtora com recursos de contrato com a Codevasf, um anel viário, tem
menos de dois anos e buracos enormes, apesar de ter passado por uma reforma.
Empreiteira admite problema e diz que asfalto será reparado
outro lado
Em nota, a empreiteira Construservice reconheceu que o
asfalto aplicado em Araguatins (TO) tem baixa qualidade e se comprometeu a
fazer correções no pavimento.
"A Construservice está ciente do problema relatado na
cidade de Araguatins (TO), tendo sido detectados pela equipe técnica e serão
corrigidos com a remoção e substituição da camada de revestimento asfáltico,
com previsão de reinício das atividades a partir de maio de 2022, em virtude
das fortes chuvas na região."
Também em nota, a Codevasf afirmou que, após recente ação de
fiscalização, a empreiteira foi formalmente comunicada sobre a necessidade de
correção em parte das obras em Araguatins.
Quanto à paralisação das obras no povoado de Macaúba, em
Sítio Novo do Tocantins, a Construservice também admitiu o fato, mas afirmou
que a interrupção ocorreu "em virtude da impossibilidade de prosseguimento
das obras de terraplanagem devido às fortes chuvas na região, fato público e
notório".
"O serviço será retomado a partir de maio de 2022,
inclusive com recuperação do trecho danificado pelas fortes chuvas",
relata a empresa.
Já a Codevasf tem explicação diferente, ao declarar que a
obra foi paralisada "para avaliação da composição dos bloquetes de
concreto empregados pela empresa contratada, que estavam sendo fabricados com
seixo rolado, um agregado comum da região".
"A contratada apresentou ensaios e laudos relacionados à
qualidade do material usado --esses laudos estão em avaliação pela
Codevasf", completou.
Sobre as irregularidades encontradas em pavimentações em
Alagoas, a Codevasf afirmou que "analisa e incorpora a seus procedimentos
recomendações da CGU" e "encaminhamentos relacionados a emendas ao
Orçamento são externos à companhia".
Quanto à concorrência vencida pela empresa Liga Engenharia, a
Codevasf declarou que a empreiteira foi contratada após processo licitatório
regular e a unidade técnica do TCU concluiu que não houve superfaturamento.
"Relações sociais ou familiares existentes entre sócios
de empresas participantes de pregões e terceiros são desconhecidas e não
integram o rol de critérios de classificação ou desclassificação", afirma.
Um acervo técnico apresentado pela Liga Engenharia mostrou a prestação
de serviços para órgãos públicos no estado da Bahia, completou a estatal sobre
o assunto.
Em relação ao asfalto "farofa" em Petrolina, a
Codevasf relatou que uma inspeção verificou que o problema se deve à presença
de um lençol freático raso, identificado após o período de chuvas.
"Seu rebaixamento forçado comprometeria estruturalmente
as edificações da área. A Codevasf tem avaliado alternativas, como um programa
de macrodrenagem da quadra em que a rua está localizada."
Procuradas pela reportagem por email e telefone, as
empreiteiras Liga Engenharia e Enciza não se manifestaram.