Lula e Tarcísio demonstraram a maturidade necessária para lidar com a emergência no litoral de forma impessoal (Por Vera Magalhães)
As cenas da tragédia no Litoral Norte de São Paulo evocam
outras, em diferentes estados do Brasil, nos últimos anos nesta mesma época.
Essa recorrência mostra que o poder público, em seus diferentes níveis de
responsabilidade, não consegue fazer investimentos e estabelecer protocolos de
prevenção e mitigação do efeito de desastres naturais, cada vez mais intensos e
de consequências avassaladoras.
Mas, se há algo de positivo no que se seguiu à destruição no
litoral paulista, é a volta da razoabilidade na relação entre os Executivos
federal e estadual na reação. Durante anos, Jair Bolsonaro não hesitou em usar
mesmo episódios de desolação, com mortos e desabrigados, para colocar em
prática seu projeto de dilapidar a política.
Ao transformar governadores e prefeitos em inimigos, pelo
simples fato de serem adversários políticos e de pertencerem a partidos de
oposição, ajudou a disseminar numa parcela da sociedade o ódio e a
intolerância, que explodiram desde que foi proclamado o resultado das eleições
e atingiram o ápice no 8 de Janeiro.
É um alento que Tarcísio de Freitas, eleito na esteira do
bolsonarismo, vá se distanciando da matriz em episódios que funcionam como
teste de convivência institucional entre entes federativos, como a própria
resposta aos atos terroristas de janeiro e a calamidade pública de agora.
É aterrador que o óbvio bom senso precise ser louvado, ainda
mais quando há dezenas de mortos e milhares de atingidos. Mas basta lembrar que
há exatamente um ano o então presidente se recusou a enviar recursos à gestão
João Doria para atender a municípios da região Sul do estado atingidos também
por enchentes. E que recusou oferta de ajuda humanitária da Argentina quando a
Bahia foi devastada pelas chuvas. Na cabeça de Bolsonaro, o fato de o
presidente argentino, Alberto Fernández, e o então governador da Bahia, Rui
Costa, serem “de esquerda” era o que ditava a diretriz de Estado.
Lula e Tarcísio demonstraram a necessária maturidade para lidar com a emergência no litoral de forma impessoal e com a urgência que a situação exige. E o ambiente político está tão corroído que não faltaram críticas ao governador na “esgotosfera” bolsonarista. Equipes de jornalistas foram agredidas por moradores de um condomínio de luxo numa das praias de São Sebastião ao tentar documentar o estrago das chuvas, aos gritos de “esquerdistas” e “comunistas”.
O episódio mostra a profundidade do dano da conduta
antirrepublicana de Bolsonaro na vida em sociedade, a ponto de pessoas que
também se viram atingidas por uma calamidade se sentirem mais invadidas e
incomodadas pela imprensa, transformada em vilã, que pela intempérie e de
abolirem qualquer noção de empatia com aqueles mais desassistidos que, esses
sim, perderam tudo e terão de reconstruir sua vida do zero.
Alimentados pela irracionalidade extremista, esses grupos
compõem uma parcela do eleitorado de direita no Brasil hoje. Certamente as alas
mais radicalizadas voltarão suas baterias contra Tarcísio ou qualquer outro
político identificado como conservador que decida ter uma relação civilizada
com Lula e o PT. Foi dessa forma que antigos aliados de Bolsonaro foram
transformados em traidores e sua reputação e sua carreira política foram
destruídas pelas milícias digitais bolsonaristas.
Ainda está por ser criado o espaço para uma direita
democrática, que entenda a política como ambiente de debate ideológico e visões
de mundo, mas não de aniquilação dos diferentes.
Essa construção passa pelo rompimento do cordão umbilical de toda uma linhagem de políticos que se elegeram graças ao sobrenome do ex-presidente que tentou dinamitar a democracia. Até aqui, ninguém conseguiu fazer essa ruptura e continuar viável eleitoralmente.