No último ano do mandato de Jair Bolsonaro, organizações como a ONU e o MPF fizeram denúncias (Por Patrik Camporez -Brasília)
Denúncias enviadas à Fundação Nacional dos Povos Indígenas
(Funai) durante o último ano de mandato de Jair Bolsonaro revelam que a grave
crise humanitária que assola os Povos Ianomâmis era uma tragédia anunciada. O
órgão recebeu 36 alertas sobre as más condições enfrentadas pela etnia entre
abril e novembro do ano passado, equivalente a cinco por mês. Os comunicados
partiram dos próprios indígenas, de organizações internacionais, como a ONU, e
braços do Estado como o Ministério Público Federal (MPF). Eles revelam
episódios de estupro, disseminação de doenças e desnutrição aguda.
Procurada para comentar quais providências foram tomadas a
respeito dos ofícios, a Funai não se manifestou.
Abril do ano passado marca o início do agravamento da crise.
No dia 25 daquele mês, o Conselho Distrital de Saúde Indígena local divulgou
que uma menina da etnia, de 12 anos, havia morrido após ser estuprada por
garimpeiros. O episódio chamou a atenção de entidades nacionais e estrangeiras,
que passaram a denunciar o que se passava na região à Funai. O GLOBO teve
acesso ao material por meio da Lei de Acesso à Informação.
No dia 28 de abril, três dias após a morte da indígena de 12
anos, lideranças Ianomâmis mandaram um pedido de socorro à Funai. Relatavam as
agruras vividas e denunciavam a ação de garimpeiros ilegais, que historicamente
atuam na região. “Em todo o território, o garimpo invade nossas terras, destrói
nosso modo de vida, nossas roças e gera fome e violência. Nossas famílias estão
adoecendo e morrendo de doenças facilmente tratáveis. Nossos jovens estão
morrendo da violência das armas de fogo trazidas pelos garimpeiros. Queremos
viver em paz”, dizia o apelo da Hutukara Associação Yanomami.
Outros membros da comunidade fizeram denúncias por meio do
Disque 100, um canal de recebimento de denúncias do governo federal, que eram
retransmitidas à Funai. “A crianças da terra indígena yanomami estão morrendo
de com sintomas de malária e desnutrição, sem nem mesmo receber tratamento
médico”, escreveu um indígena em 9 de maio de 2022. Por medo de represálias,
ele pediu para não ter o nome divulgado no sistema do governo.
Conforme a situação se agravava, algumas das organizações
internacionais mais importantes do mundo passaram a enviar representantes à
região, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Escalado para a missão, Jan Jarab colheu relatos in loco de 22 a 26 de maio. Ao
fim, encaminhou um relatório à Defensoria Pública da União, que o remeteu à
Funai.
Àquela altura, o funcionário da ONU já classificava o caso
como uma “grave crise humanitária e de direitos humanos”. Ele reporta ter
presenciado na terra indígena casos de desnutrição infantil, que agora ganharam
o mundo com a propagação de imagens de crianças visivelmente subnutridas. Ele
também cita introdução do álcool e drogas, além de “abusos sexuais contra mulheres
e meninas por garimpeiros".
Assim como a ONU, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos cobrou ao governo brasileiro a “adoção das medidas necessárias para
prevenir a exploração e a violência sexual contra as mulheres e crianças dos
Povos Indígenas Ianomâmis”. Além da Funai, o documento foi entregue para a
Coordenador-Geral de Cooperação Internacional da Polícia Federal.
Presidente da Funai
Um dos alertas partiu de quem hoje preside a Funai: a então
deputada federal Joenia Wapichana. No dia 14 de setembro, ela formalizou ao
Ministério da Justiça a denúncia sobre a morte de seis crianças indígenas nas
regiões de Xitei e Surucucus, localizadas na Terra Indígena Yanomami. A
parlamentar disse, na época, que a causa das mortes envolvia “falta de
assistência à saúde indígena em Roraima” e cobrou providências. Dois dias
depois, o caso foi enviado à Funai e Polícia Federal.
Procurada, a PF disse apenas que todas as informações
recebidas são analisadas e, “sendo constatadas a materialidade do fato e a
existência de indícios de autoria, devidamente investigadas”. A corporação não
respondeu se investigou as denúncias o caso levado por Joenia.
MPF: situação
“alarmante”
A procuradoria da República do Ministério Público Federal em
Roraima mandou um ofício para a Funai, em 20 de julho do ano passado,
classificando como “alarmantes indicadores de vigilância alimentar e
nutricional da TI yanomami”. Na ocasião, alertava que mais da metade das
crianças ianomamis, já naquela época, possuía “algum grau de desnutrição"
e que em algumas regiões até "80% das crianças estavam desnutridas”.
“A cada 3 dias uma criança ianomami tem que ser removida para receber atendimento de média ou alta complexidade por subnutrição grave, muitas delas indo a óbito". O MPF comparou: a terra indígena registra índices piores que o Sul da Ásia e a África Subsaariana, onde estão os países com piores dados de subnutrição infantil”, dizia o documento, assinado pelo procurador da república Alisson Margual.