PF suspeita da existência de uma organização criminosa no entorno do ex-mandatário
A revelação do plano golpista que previa os assassinatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice Geraldo Alckmin e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi avaliada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) como mais um elemento que reforça a possibilidade de uma única acusação criminal, em várias frentes, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados. A Polícia Federal suspeita da existência de uma organização criminosa no entorno do ex-mandatário que atuou para tentar um golpe de Estado, atacar instituições, vender joias ilegalmente, fraudar cartões de vacinação e espionar adversários.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, deve receber nos próximos dias a conclusão da PF sobre a trama golpista. Auxiliares dele analisam que é necessário examinar a suposta participação do ex-presidente nas tentativas golpistas em conjunto com os outros inquéritos para fechar as conexões.
Bolsonaro não se manifestou após os novos desdobramentos, mas em outras ocasiões negou que tenha participado de uma tentativa de ruptura institucional. Em entrevista ao jornal O GLOBO há duas semanas, ele disse que houve debates sobre a decretação de estado de sítio, mas afirmou que “não é crime discutir a Constituição”.
Mesmo “modus operandi”
Na decisão em que decretou a prisão de quatro militares e um policial federal pelo envolvimento no plano, Moraes apontou cinco eixos de investigação envolvendo Bolsonaro e seu entorno. Segundo ele, uma das linhas trata de “ataques virtuais a opositores”, em investigação dentro do inquérito das milícias digitais. Há ainda apurações sobre ataques às instituições e às urnas; tentativa de golpe de Estado; uso do Estado para “obtenção de vantagens”, como inserção de dados falsos em cartões de vacina e desvios de joias; e ataques aos imunizantes e às medidas sanitárias na pandemia. De acordo com a PF, o grupo que tramou pelo golpe usou o mesmo “modus operandi da milícia digital” que promoveu ataques contra instituições e disseminou informações falsas sobre o processo eleitoral.
Há, ainda, uma investigação em curso que apura se uma estrutura paralela na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi usada durante o governo Bolsonaro para espionar ilegalmente adversários e disseminar ataques contra eles. A PF suspeita que o policial preso nesta semana, Wladimir Matos Soares, que forneceu informações sobre a segurança de Lula no fim de 2022 aos militares que arquitetaram o plano, tinha relação com um integrante do grupo que agia à margem na Abin.
Soares foi interrogado pela PF na terça. Segundo o Jornal Nacional, ele afirmou em depoimento que soube do plano de golpe e foi cooptado a participar do grupo por um agente, que é investigado pelo suposto esquema paralelo na Abin. Essa equipe faria a segurança de Bolsonaro caso um golpe fosse consumado. O policial preso fez parte da equipe de segurança de Lula na transição.
A lógica por trás dessa análise ampla por parte da PGR é fazer com que uma eventual acusação ligue todos esses elementos, fortalecendo a argumentação de que o ex-presidente agiu de forma direta na ocorrência de um plano golpista após as eleições de 2022, quando perdeu para Lula. A expectativa é que a investigação da PF termine nos próximos dias, com a possibilidade do indiciamento de Bolsonaro e seu entorno.
“Os elementos trazidos aos autos comprovam a existência de gravíssimos crimes e indícios suficientes da autoria, além de demonstrarem a extrema periculosidade dos agentes, integrantes de uma organização criminosa, com objetivo de executar atos de violência, com monitoramento de alvos e planejamento de sequestro e, possivelmente, homicídios do então presidente do TSE, do presidente eleito e do vice-presidente eleito”, disse Moraes na decisão.
No curso das investigações, a PF já apontou conexões entre as diferentes investigações que tratam das ações de Bolsonaro e aliados — é justamente por haver relação entre os inquéritos que todos tramitam sob a relatoria de Moraes.
Conforme os investigadores, a PF apura a “articulação de pessoas” do círculo próximo a Bolsonaro, “com tarefas distribuídas”. Além dos alvos que aparecem em mais de um inquérito — casos de Bolsonaro e do ex-ajudante de ordens Mauro Cid , por exemplo —, a PF identificou relação entre os acontecimentos. O ex-presidente, segundo esta linha de apuração, só teria ido aos Estados Unidos no fim de 2022 porque não conseguiu respaldo da cúpula das Forças Armadas para o golpe. Na viagem, a comitiva dele levou parte das joias desviadas do acervo presidencial, segundo a PF.
O dinheiro da venda dos itens, segundo a investigação, foi usado para custear a estadia na Flórida. Além disso, para a PF, Bolsonaro, Cid e seus familiares teriam fraudado os seus cartões de vacinação para evitar problemas na hora de entrar em países que cobravam a imunização contra a Covid-19, como os EUA.
Mauro Cid é elo
Cid é visto pela PF como peça-chave nessa teia de investigações. Enquanto debatia a possibilidade de golpe, como mostram mensagens apreendidas pela PF, ele também buscava saídas para o antigo chefe caso a empreitada não fosse adiante. No caso das vacinas, o mais avançado judicialmente, Cid revelou que recebeu ordens de Bolsonaro para que inserisse os dados dele e de sua filha no sistema de controle de vacinação do SUS. A PF identificou que os cartões com os dados falsos de imunização foram emitidos no Palácio do Planalto.
O caso das joias, em que Bolsonaro foi indiciado, foi considerado o estopim para a decisão de Cid de fechar um acordo de colaboração premiada, que está em reavaliação (leia mais na página 6). Esse inquérito também conta com vasto acervo probatório que mostra seu elo com o ex-presidente no cometimento de supostos crimes. A PF identificou que o ex-ajudante de ordens viajou e vendeu itens recebidos pelo ex-mandatário. Dados do celular de Cid confirmam o trajeto e coincidem com a venda dos objetos nos Estados Unidos.
Papel semelhante foi verificado pela PF nas investigações da tentativa de golpe. Cid contou que Bolsonaro recebeu uma minuta de um decreto golpista com diversas páginas elencando supostas interferências do Poder Judiciário no Executivo e propondo medidas antidemocráticas. O militar também contou que Bolsonaro se reuniu com a cúpula das Forças Armadas e ministros militares e discutiu detalhes dessas minutas. De acordo com as apurações, os então comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, não embarcaram na ofensiva golpista.
As ligações entre os casos que tiveram origem em episódios distintos já levaram Moraes a determinar o compartilhamento de provas entre diferentes inquéritos. Em julho, quando novas descobertas sobre a “Abin paralela” vieram à tona, ele ordenou que as informações também passassem a integrar as apurações sobre as milícias digitais e a tentativa de golpe. De acordo com o ministro, havia “conexão probatória” entre os casos — opinião semelhante à da PGR, para quem a estrutura ilegal na agência é “apenas uma célula de uma organização criminosa mais ampla”.
Da Redação