(Crédito: Bruna Prado)
Vergado em lágrimas, destroçado por uma dor dilacerante que não cessa, apelando por compaixão frente ao sofrimento que lhe rasgou a alma, o taxista Marcio Antônio Nascimento expunha a razão do desespero, pela primeira vez em público diante das câmeras, na segunda-feira 18, ante a CPI da Covid que concluía os trabalhos: “o último momento que eu tive com meu filho, que eu fui reconhecer, ele estava dentro do saco. Eu não pude dar um abraço, não pude dar o último beijo. Cheguei a levar uma roupa para vesti-lo. Não consegui. A minha dor não é mimimi”. Não havia como não se condoer com a cena. A própria tradutora de libras, presente ao momento, travou, teve de parar o trabalho para se recompor diante do que assistia. Ninguém, em pleno controle das faculdades mentais, normal e civilizado, ficaria impassível ao ouvir tão angustiante depoimento. O filho de Márcio, Hugo Dutra Nascimento, de 25 anos, entrou para o rol das mais de 600 mil vítimas da pandemia no Brasil. E o pai, Márcio, visivelmente atordoado, alquebrado pela saudade sem fim, reclamava do deboche presidencial com os óbitos e exigia um pedido de desculpas do mandatário Bolsonaro. Algo simples, absolutamente justificável, mas que não encontraria eco ou resposta nos salões envidraçados do Planalto, logo ali perto, a poucos metros de onde relatava seu calvário. Foram seguidos e inúmeros os apelos no mesmo sentido, proferidos nos testemunhos de parentes órfãos convidados à sessão. Em vão. O inquilino do Palácio, que em dado momento fora capaz de imitar moribundos em agonia com falta de ar, nunca manifestou qualquer gesto de empatia ou amparo por aqueles que não resistiram à doença. Ao contrário.
Edilson Rodrigues
Em tom de irritação com as cobranças, o “mito” Bolsonaro, em
determinada ocasião, chegou mesmo a tripudiar de viva voz, aos berros no
microfone, criticando sem dó os tomados por essa tragédia em escala. “Vocês não
ficaram em casa? Não se acovardaram? Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar
chorando até quando?”. Em que grau de maldade pode ser classificada uma declaração
como essa diante do imenso martírio e aflição que destruíram famílias, lares,
amigos, conhecidos, objetivos de vida? A dimensão da patologia implícita no
comportamento do mandatário é típica dos loucos inconsequentes internados em
manicômios. Jamais de um chefe de Nação. Jair Bolsonaro, todos sabem e
acompanharam, fez ainda mais e pior. Patrocinou mortes em escala, não apenas
com o seu negacionismo, mas com ações efetivas de incitação ao tumulto, de
promoção de drogas ineficazes (fatais em muitos casos), de pregação contra o
uso de máscaras, de inconsequência e descaso na compra atrasada de vacinas, de
pouco caso e demora deliberada no fornecimento de oxigênio em resposta à
tragédia de Manaus, que também redundou em óbitos (milhares deles) e com toda
sorte de irresponsabilidades, natas de quem jamais esteve preocupado com o
assunto. Kits de exames de covid apodreceram até o vencimento nos galpões do
governo, sem distribuição, apesar da necessidade vital de seu uso nas unidades
de emergência. Equipamentos e medicamentos também deixaram de ser fornecidos em
escala suficiente na rede do SUS, e mesmo a verba de bilhões de reais, aprovada
e reservada no orçamento pelo Congresso para o combate à doença, sequer foi
destinada para esse fim. Tamanha coletânea de imprudências evidencia o pendor
do presidente para o morticínio. Devido a uma filigrana jurídica, os
responsáveis pela Comissão de Inquérito do Congresso, que apura as práticas
irregulares durante a pandemia e pediu o indiciamento do mandatário e de mais
60 envolvidos, resolveram de última hora retirar do relatório as acusações de
genocídio e homicídio que lhe eram originalmente atribuídas. O acordão político
nesse sentido tomava por base o fato de os tribunais raramente aceitarem
condenações por genocídio, dada a difícil tipificação dele. O termo surgiu pela
primeira vez no Tribunal de Nuremberg, que julgou nazistas pelas atrocidades do
Holocausto durante a 2ª Grande Guerra e, na ocasião, mesmo frente aos evidentes
fatos, os acusados foram punidos apenas por crimes contra a humanidade. Na
convenção das Nações Unidas de 1948 – também subscrita pelo Brasil –, o
genocídio é caracterizado como “uma série de atos cometidos com a intenção de
destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. O
conjunto da obra de destruição do “mito” Messias, ao menos aos olhos da imensa
maioria da população brasileira, parece apontar nessa direção. A parvoíce e
absoluta petulância do presidente não podem lhe reservar o direito de sair
impune após as conclusões da Comissão. Pelo código penal, as denúncias
imputadas a Bolsonaro somariam, caso referendadas no campo jurídico, ao menos
40 anos de prisão. Seu filho e senador, Flávio Bolsonaro, diante do resultado e
da leitura do relatório final, debochou insolentemente e disse que o pai daria
gargalhadas quando comunicado das conclusões. Dito e feito. O capitão, movido
pela empáfia e prepotência que lhes são peculiares, reagiu jocosamente.
Perguntado a respeito, disparou: “você acha que vou me preocupar com CPI? Tá de
brincadeira”. São cenas repugnantes de um governo errático. A orfandade em
massa de famílias brasileiras merece mais respeito e a devida responsabilização
legal pelas imprudências cometidas. O presidente que afrontou à Constituição,
prevaricou descaradamente e vilipendiou as tarefas que eram natas do seu cargo
terá de responder pelos erros. No fundo sabe dos riscos que lhe pesam sobre a
cabeça daqui por diante. Mesmo em Cortes internacionais ele já foi arrolado em
processos como homicida. Um predador abjeto, que vê cada cidadão como mero
eleitor para lhe garantir mandato, pode não ter qualquer complacência para com
os semelhantes, mas, cedo ou tarde, pagará o preço por tanto desaforo. Márcio,
o taxista inconformado, que em seu pungente depoimento representou a angústia
de milhões, lembrou a razão dessa luta: “a gente está falando de vidas, de
pessoas que morreram, sabe? Quem fala que é circo é porque não se importa com
as pessoas que morreram. Então, eles são os verdadeiros palhaços, não somos
nós. Desculpem. A dor continua por tudo que veio depois. Por cada deboche, cada
sorriso, cada ironia”. Como Márcio, tantos outros brasileiros dão rosto a essa
tenebrosa catástrofe. Não são meros números, estatísticas. Não deveriam ouvir
simplesmente o “E daí? Morreu? É da vida”. Agride, machuca, dilacera,
barbariza. Apenas monstros agem assim.