CEMDP analisará apuração sobre acidente que matou ex-presidente em 1976; perícia pedida por Ministério Público difere de conclusão de 2014
O Opala de JK destruído na colisão com carreta na via Dutra em 1976 – Folhapress/FolhapressUma novela iniciada há quase 50 anos está prestes a ganhar um novo capítulo.
O governo Lula e a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos (CEMDP), órgão de Estado que tem apoio técnico-administrativo do
Ministério dos Direitos Humanos, decidiram reabrir o caso do acidente que matou
o ex-presidente Juscelino Kubitschek, cujas causas são motivo de controvérsia
desde a ditadura.
Numa reunião da CEMDP nesta sexta (14) no Recife — a terceira
do colegiado desde que foi recriado por Lula, depois de ser extinto por Jair
Bolsonaro —, os seus sete integrantes devem aprovar uma reanálise do intrincado
episódio.
Por volta das 18h de 22 de agosto de 1976, um domingo, o
Opala em que estava JK, conduzido por seu motorista e amigo Geraldo Ribeiro,
trafegava na altura do km 165 da via Dutra, em direção ao Rio, quando,
desgovernado, atravessou o canteiro central, invadiu a pista oposta (sentido
São Paulo) e se chocou de frente com uma carreta. JK e Ribeiro morreram com a
colisão.
Diversas investigações buscaram elucidar por que o motorista
perdeu o controle do Opala. As conduzidas pela ditadura concluíram que logo
antes da colisão o carro foi atingido por um ônibus da viação Cometa ao tentar
ultrapassá-lo. Foi o mesmo veredito da CNV (Comissão Nacional da Verdade) em
2014 e de uma comissão externa da Câmara dos Deputados em 2001. Por essa
versão, tratou-se, portanto, de um acidente.
Outras apurações concluíram que JK foi, na verdade, vítima de
um atentado político, reunindo indícios de que não houve batida entre o Opala e
o ônibus e de que o carro se desgovernou por alguma ação externa — sabotagem
mecânica ou mesmo um tiro ou envenenamento do motorista. Essa foi a conclusão
das Comissões Estaduais da Verdade de São Paulo — amparada por um grupo de
trabalho com pesquisadores das universidades USP e Mackenzie — e de Minas
Gerais, além da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo.
Como meio-termo, mas mais próximo deste segundo grupo, um
inquérito civil conduzido pelo Ministério Público Federal (MPF) por seis anos,
de 2013 a 2019, descartou que tenha havido choque entre o ônibus e o Opala, mas
concluiu ser “impossível afirmar ou descartar” a hipótese de atentado, “vez que
não há elementos materiais suficientes para apontar a causa do acidente ou que
expliquem a perda do controle do automóvel”.
O procurador da República Paulo Sérgio Ferreira Filho
escreveu que “houve falhas severas nas investigações realizadas pelo Estado
brasileiro”, e cita entre elas os processos por homicídio culposo contra Josias
Oliveira, o motorista do ônibus da Cometa que teria batido no Opala – ele
terminou absolvido. (Em depoimento em 2013, Oliveira contou ter recebido, cinco
dias depois do acidente, uma oferta em dinheiro para assumir a culpa.)
O MPF convidou o engenheiro e perito Sergio Ejzenberg,
especialista em transportes, para examinar laudos feitos em 1976 e 1996 pelo
Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), do Rio — que embasaram a tese
oficial de choque do ônibus no Opala – e preparar um novo estudo sobre o
acidente, que levou três anos para ser concluído.
Finalizado em 2019, o trabalho de Ejzenberg (voluntário) veio
à luz em 2021, quando o MPF tornou público o inquérito. Demole tecnicamente os
laudos anteriores e rejeita a hipótese de que uma colisão causou o desastre. A
perícia conduzida pelo engenheiro, escreveu o procurador Ferreira Filho, é
“peça chave” para entender o que houve e constitui a “maior contribuição que o
(…) inquérito civil trouxe para o caso”.
O laudo de Ejzenberg foi também essencial para que o governo
Lula queira agora retomar o episódio. A decisão nesse sentido partiu do chefe
da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério
dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e tem o endosso da presidente da CEMDP,
procuradora Eugênia Gonzaga, e da maioria do colegiado.
No ano passado, o Ministério dos Direitos Humanos foi instado
pelo ex-vereador paulistano Gilberto Natalini, que presidiu a Comissão
Municipal da Verdade, a reabrir a investigação. O principal argumento do pedido
foi o laudo de Ejzenberg –e a admissão do MPF de que não era possível
comprovar, com os elementos disponíveis, a causa do desastre que matou JK.
Nilmário Miranda acolheu o pedido e o encaminhou aos
titulares da pasta (primeiro Silvio Almeida, depois Macaé Evaristo) e à CEMDP.
Como a lei que criou a comissão (em 1995) fixava prazos, já expirados, para
requerimentos –tampouco houve pedido da família de JK –, a tendência é que a
reabertura do caso seja justificada com o argumento de esclarecimento da
verdade histórica. Seja qual for o desfecho, não haverá indenização financeira.
Mas uma retomada do caso será capaz de esclarecer inúmeros
pontos obscuros do episódio? Em certos casos, parece impossível. Como aponta o
laudo de Ejzenberg, “a suspeita de sabotagem mecânica [do Opala de JK] não era
infundada”, mas “o total desmantelamento do automóvel” pelos investigadores da
ditadura no pátio da Delegacia de Resende (RJ) impediu que a perícia da época
esclarecesse a dúvida.
Nas perícias médicas da época, não foi feito laudo
toxicológico para substâncias distintas do álcool, para saber se pode ter
havido intoxicação ou envenenamento de Geraldo Ribeiro (o motorista de JK).
Segundo o motorista da carreta que atingiu o Opala, Ribeiro
parecia desfalecido antes mesmo da colisão. A hipótese de que tenha levado um
tiro instantes antes foi aventada. Um perito (Alberto Carlos de Minas) disse
ter visto um buraco semelhante a um tiro no crânio de Ribeiro durante uma
exumação em 1996. Na ocasião, uma peça de metal semelhante a uma bala foi
encontrada dentro do caixão. Outros peritos afirmaram que era uma espécie de
prego, gerando controvérsia entre os adeptos da tese de atentado.
Um desses adeptos foi o escritor e jornalista Carlos Heitor
Cony, que abordou o tema em livros (“Memorial do Exílio”, “O Beijo da Morte”,
“Operação Condor”, os dois últimos com Ana Lee). Ele era repórter da revista
Manchete na época do acidente e esteve no hotel onde JK parou pouco antes da
colisão. Contou ter ouvido do guardador do estacionamento que o motorista
Geraldo Ribeiro, após deixar o Opala parado por cerca de 45 minutos, estranhou
o carro ao voltar e lhe perguntou se alguém havia mexido nele. O guardador
negou.
Um fato incontestável é que JK era uma pedra no sapato dos
militares. Um dos líderes da Frente Ampla, grupo de oposição à ditadura,
almejava se candidatar à presidência pelo Colégio Eleitoral nas eleições
indiretas de 1978. Apoiada pelos EUA, a Operação Condor, ação coordenada entre
ditaduras do Cone Sul para perseguir opositores políticos, planejou eliminar
lideranças políticas da região.
O jornalista americano Jack Anderson revelou no jornal “The
Washington Post” uma carta enviada por Manuel Contreras, chefe da polícia
secreta chilena e cabeça da Operação Condor, a João Figueiredo, então chefe do
SNI e futuro presidente-ditador, mencionando JK e o diplomata e ativista
chileno Orlando Letelier como ameaças à estabilidade dos governos da região.
Letelier foi assassinado pela ditadura chilena num atentado em Washington em
1976.
“As provas que demonstrariam que ele foi assassinado foram
destruídas e ocultadas. Neste cenário, juridicamente inverte-se o ônus da prova
contra o Estado”, afirma a advogada Lea Vidigal, integrante do grupo que
embasou a investigação da Comissão Estadual da Verdade de SP e coautora (com
Alessandro Octaviani e Marco Aurélio Braga) do livro “O Assassinato de JK pela
Ditadura – Documentos Oficiais”.
“Não é a vítima que tem que provar que foi assassinada. Num
regime de exceção que perseguia e matava opositores e que ocultou as provas, é
o Estado que tem que provar que é inocente. Portanto, o Estado é responsável, e
tem que ser declarado o assassinato do JK.”
Da Redação