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 Bolsonaro conspurcou a liberdade. Ele fala do assunto sem parar, hoje mesmo repetiu que “a liberdade não tem preço, vale mais que a própria vida”. Mas seu uso da palavra é sórdido. Ela sai da sua boca deformada, usando aqueles óculos escuros enormes do coronel Brilhante Ustra e soltando fumaça negra por todos os orifícios, como os tanques daquele desfile militar de triste memória.

© Fornecido por IstoÉ

O presidente disse hoje num evento em Cuiabá que “quase toda a população está apavorada com a supressão das liberdades por uns poucos que habitam ali a praça dos Três Poderes”. Segundo ele, uma minoria está “oprimindo” os brasileiros.

Para começar, há tempos Bolsonaro já não fala em nome da maioria dos eleitores, muito menos de “quase toda a população”. Hoje, ele representa uma minoria que não para de minguar. Todas as pesquisas coincidem nesse diagnóstico.

Mas o grupo de fiéis “apavorados com a supressão das liberdades” a que ele se refere é ainda mais ínfimo. Não estamos falando dos bolsonaristas que vão às ruas embrulhados na bandeira brasileira, e sim de um punhado de golpistas que transformou em carreira política ou em negócio lucrativo a propagação de mentiras e ameaças.

Esses golpistas vêm sendo atingidos por decisões daqueles “poucos que habitam a praça dos Três Poderes”, ou seja, ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.

Eles estão na mira do inquérito das fake news, presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, que recentemente incluiu o próprio Bolsonaro na investigação. Eles perdem dinheiro desde que o corregedor-geral da Justiça Eleitoral, o ministro Luis Felipe Salomão, mandou que as redes sociais suspendam os pagamentos por seus posts cheios de teorias conspiratórias e incitações ao golpe de Estado. Eles são os únicos apavorados, porque o tiozinho da bandeira brasileira não teve até agora com que se preocupar – e nem terá.

Além de transformar seis ou sete milicianos digitais em multidão, Bolsonaro tenta pintá-los como mártires da liberdade de expressão. Não são. Eles não estão sendo oprimidos. Estão acertando contas com a Justiça, porque infringiram a lei, despejando na internet uma barragem de inverdades e teses capciosas que procuram apagar a fronteira entre fatos e invenções.

Máscaras e vacinas são outros tópicos comuns nos falatórios de Bolsonaro sobre liberdade. Ele acredita que obrigar pessoas a usar máscaras ou tomar vacinas são atos brutais, tirânicos. Só falta dizer que é muito pior do que torturar gente no porão do DOI-Codi.

Essa tese provavelmente foi soprada ao ouvido de Bolsonaro por seus filhos, que por sua vez devem tê-las aprendido em algum panfleto tosco sobre o libertarismo americano. Como o libertarismo (ou libertarianismo) tem aversão ao Estado, e ainda mais a imposições do Estado sobre o corpo dos indivíduos, é incontornável que ele rejeite máscaras e vacinas obrigatórias, correto? Não é bem assim.

Já escrevi sobre isso aqui. Esse debate foi levado a sério nos Estados Unidos. E lá, até mesmo libertários de quatro costados aceitaram que numa situação extrema como a pandemia as equações mudam. O filósofo Jason Brennan argumenta que o respeito à liberdade individual não é incompatível com vacinação compulsória ou uso de máscaras.

 

Repito um parágrafo de um texto mais antigo: Brennan invoca o “princípio das mãos limpas”, segundo o qual todo indivíduo tem a obrigação de se abster de opções que, agregadas, causam danos. Uma pessoa que deixa de se vacinar parece ser irrelevante. Mas tomados em conjunto, os indivíduos que não se imunizam quando poderiam fazê-lo aumentam o risco de uma doença se espalhar e causar vítimas. Ao se omitir, eles “sujam as mãos. Em outras palavras, há situações em que até mesmo o individualista mais empedernido deve levar em consideração a comunidade em que vive.

Também poderia haver uma discussão séria sobre liberdade de expressão. Para justificar limitações a esse direito, os ministros do Supremo vêm usando, não é de hoje, conceitos como o de “democracia militante”, que foi desenvolvido na Alemanha depois do nazismo e diz que países democráticos precisam ter ferramentas para sua ordem política daqueles que tentam subvertê-la. Entre essas ferramentas está a censura aos discursos de ódio ou às incitações golpistas. Há gente séria que discorda dessa teoria, e não há mal em fazer esse debate.

Não estou dizendo que Bolsonaro deveria virar um teórico da liberdade. Seria injusto, além de ridículo. Esses são apenas exemplos claros de que não é pecado discutir as decisões do STF sobre liberdade de expressão, ou a obrigatoriedade do uso de máscaras, desde que isso seja feito com honestidade e boa fé. O problema de Bolsonaro não é a falta de profundidade, mas a falta de honestidade e boa fé.

Bolsonaro fala liberdade pensando no seu oposto. Seu conceito depende do fechamento do Congresso e do STF, do cancelamento de eleições e da prisão de adversários. Liberdade, para ele, é uma ordem que ele possa ditar.

 Com



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