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 Grupos lutam por reconhecimento e direitos sociais; '200+20': nos dois séculos de independência do Brasil, série de reportagens mira no futuro

Por Bianca Gomes, Mariana Rosário e Pâmela Dias — Rio e São Paulo


200+20: série de reportagens sobre a Independência discute o Brasil para o futuro — Foto: Arte O Globo

A origem da palavra comemorar, sublinha a historiadora Heloisa Starling, é “lembrar juntos”. No Bicentenário da Independência, é preciso, diz uma das autoras de “Brasil:uma biografia”, enfatizar que o processo da emancipação de Portugal, fincado na escravidão e na monarquia, resultou em uma sociedade desigual, racista e violenta. E que dele foi excluída a maioria dos brasileiros: indígenas, negros, mulheres, e LGBTQIA+. Estes, como atestam os depoimentos colhidos para este especial, ainda procuram “suas independências”.

Infografia: Linha do tempo mostra as conquistas de indígenas, mulheres, negros e gays em busca de sua independência

Lilia Schwarcz: 'Ainda não demos o grito de independência', diz a historiadora

 Em 1822, as mulheres já reclamavam seu devido direito à voz pública, a população negra lutava decididamente pelo fim da escravidão e os indígenas defendiam suas terras e modo de vida. E tudo isso, somado à luta LGBT, continua, de certa forma, na pauta — diz a pesquisadora. — A reflexão central que a efeméride nos exige é a de lembrar o brasileiro que fomos, o que poderíamos ter sido em 1822, e, mais importante ainda, o que ainda queremos ser.

As raízes do descompasso entre a elite e a maioria da população na conquista da cidadania estão no contexto da sociedade brasileira do começo do século XIX — a escravidão, afinal, só foi encerrada 66 anos após o país tornar-se independente de Portugal.

O projeto original de autonomia nacional foi, assim, endereçado a indivíduos que, previamente, já ocupavam espaços de poder: homens, brancos e elitizados. Para mulheres, negros, indígenas e gays conseguirem integrar, na prática, o conjunto de cidadãos plenos do Brasil independente foram necessários séculos de luta (veja a linha acima).

Pessoas africanas que participaram ativamente da luta pela Independência, inclusive em batalhas contra tropas portuguesas, pontuam historiadores ouvidos pelo GLOBO, não se tornaram cidadãos — ao contrário dos europeus, que puderam imediatamente se naturalizar brasileiros.

 E o avanço sobre as terras dos indígenas aumentou com a Independência. Foram concedidas mais áreas a fazendeiros em regiões onde se encontravam comunidades de povos originários, com autorização do uso da força (pública e/ou privada). Os que resistiram, tachados de “bravios não-civilizados”, foram mortos, expulsos ou escravizados — afirma o historiador Mateus Gamba Torres, da Universidade de Brasília (UnB).

'200+20': Nos dois séculos de independência do Brasil, série de reportagens mira no futuro

Para as mulheres, a percepção da Independência variou de acordo com a classe social ou a cor da pele. Negras escravizadas continuaram a viver um cotidiano de trabalho extenuante, violência psicológica, física e sexual, diz Gamba Torres. As brancas, de classe média e alta, mantinham-se em atividades privadas, mas só no âmbito doméstico, tuteladas juridicamente por pais e maridos, proibidas de votar e de exercer cargo público.

Brasileiras brancas e pobres sempre trabalharam por sua subsistência, e já na infância do país muitas eram responsáveis tanto pela renda familiar quanto pelo trabalho doméstico. E, mesmo excluídas do exercício da cidadania política, eleitoral e administrativa, várias se destacaram em revoltas populares — diz o acadêmico.

Brasil para poucos

A Independência para poucos ressoa em um país que comemora o Bicentenário repleto de pendências sociais. No Brasil de 2022, revela o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), menos de 3% de mulheres e homens negros têm cargos de diretoria ou gerência nos setores público e privado. Grupos que também seguem sub-representados na política: no Congresso, as mulheres são 15% e os negros 17,8% dos eleitos em 2018.

As desigualdades afetam direitos básicos garantidos na Constituição, mas não cumpridos na prática. Entre eles o próprio direito à vida, negado escandalosamente com o registro de um feminicídio a cada 7 horas. Ou no fato de os negros terem mais do que o dobro de possibilidade de serem assassinados, como mostra o Atlas da Violência.

Os indígenas seguem lutando, em meio ao avanço do garimpo ilegal e do desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), pela demarcação de terras — essencial para a proteção contra invasões e a preservação de identidades, línguas e culturas que também formam o Brasil independente.

E, apesar de avanços recentes, os LGBTQIA+ sofrem desproporcionalmente com o preconceito e a violência. O Observatório de Assassinatos Trans alerta que o Brasil é o país que mais mata transexuais, com 125 assassinatos confirmados em 2021.

E a historiadora Keila Grinberg, da Universidade de Pittsburgh, nos EUA, pontua que lutamos para nos libertar da naturalização de hierarquias estabelecidas ainda em tempos coloniais

Duzentos anos depois, nos debatemos com as heranças da escravidão e do patriarcado. A sociedade brasileira jamais lidou com seu passado, se absteve de refletir sobre sua composição plural e não entende que reparações e medidas antirracistas são fundamentais para que as mulheres, os negros, os gays e os indígenas consigam dar também seus ‘gritos de Independência’.

Abaixo, essas pessoas defendem as suas independências:

Maria da Penha, feminista

"Ser independente é ser capaz de decidir sobre a própria vida. De perseguir seus sonhos e lutar para alcançá-los — profissionais, financeiros ou pessoais. É ter a possibilidade de ser quem de fato se é. Dei meu ‘grito de Independência’ quando voltei para a casa dos meus pais e iniciei minha luta por justiça, para que meu agressor fosse punido. Uma luta que demorou 19 anos e seis meses. E minha maior vitória foi a criação da lei batizada com o meu nome, pensada para resgatar a dignidade da mulher brasileira. E assim a prisão do meu agressor acabou sendo menos significante do que essa grande conquista. Infelizmente, no entanto, as brasileiras ainda não conquistaram plenamente sua independência. Pense em educação, saúde, mercado de trabalho, representatividade política, acesso à justiça. E pense, especialmente, na violência doméstica e familiar contra a mulher. Em pleno século XXI, ainda lutamos para viver sem medo dentro das nossas próprias casas, onde deveríamos ser amparadas e acolhidas, mas muitas vezes somos mortas. Hoje, a luta maior do instituto que leva meu nome é a implementação do inciso 9º, artigo 8, da Lei Maria da Penha, que trata da promoção de programas educacionais voltados para a disseminação de valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa com a perspectiva de gênero e raça. A educação, para mim, é central, sem ela não podemos transformar as próximas gerações. Ela é nossa grande esperança por dias melhores para as mulheres brasileiras e independentes"

Denilson Baniwa, artista plástico e indígena

"Desde 2019 vendo minhas obras para ajudar na manutenção das escolas indígenas. Meu ‘momento de Independência’ foi quando pude realizar uma performance na Bienal de São Paulo, em que apresentei um manifesto sobre arte indígena e nossa presença na arte brasileira. Foi somente com a Constituição Cidadã, em 1988, que nossos direitos sobre o local em que vivemos, nossa diversidade, cultura e línguas foram reconhecidos. E só nos anos 1990 foram criadas escolas bilíngues. Bem jovem, participei das discussões para implantá-las na minha comunidade, quando avaliamos o currículo dessas instituições. Para nós, era importante que alunos indígenas pudessem aprender português, matemática e geografia, como todos os outros brasileiros, mas também a nossa língua. A criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas também foi fundamental para que tivéssemos, finalmente, acompanhamento médico regular. Mas tudo isso foi sendo deixado de lado em meio a uma multiplicação de projetos de lei pensados para inviabilizar, na prática, nossos direitos à Educação e à Saúde. As escolas indígenas Baniwa recebem pouquíssimo apoio dos governos, na maioria das vezes a comunidade é quem as mantém funcionando. E para mudar este cenário precisamos focar na formação dos jovens indígenas, até a universidade. Eu tenho esperança, acredito que ainda iremos construir um país digno, que respeite o direito de todos os brasileiros, igualmente independentes".

Maria Lúcia Angelino, assistente social e líder quilombola

"Meus pais e avós contavam que, quando o Quilombo da Serra da Gameleira nasceu, em São Tomé (RN), eram apenas seis casinhas de taipa. Quem o fundou foi meu bisavô, Gídeo Véio, após fugir da fazenda onde era escravo, lá pelos idos de 1800, antes da Independência. O quilombo só foi reconhecido pela Fundação Palmares em 2009 e aquele foi o primeiro momento em que nos sentimos de fato independentes. Em 2016, foi erguido dentro do quilombo o Museu Gídeo Véio, um outro símbolo de esperança de liberdade, agora a partir do conhecimento da nossa história. Com o Fies, financiei metade do meu curso de Assistência Social e consegui me formar em 2016. Meu objetivo era ajudar a comunidade a conquistar direitos, que também são os meus. Eu me considero uma brasileira legítima: guerreira, determinada e lutadora, que segue resistindo a todos os tipos de opressões e vencendo barreiras para assegurar o legado do povo quilombola. Nosso quilombo conta com cerca de 480 famílias e a maioria vive de auxílios do poder público. Infelizmente, os quilombos, aqui, ainda lembram senzalas. Muitos não têm poder de decisão e são passados para trás pelos próprios governos. Mas todos aqui somos da mesma parentela e acredito que as gerações futuras saberão resistir, como nossos ancestrais. Lutamos para que o fato de sermos negros não seja um entrave para conquistas. Hoje sei que somente o conhecimento possibilita a liberdade, as oportunidades e, claro, nossa independência".

André Moresi, protagonista do primeiro casamento homoafetivo

"Eu e Sérgio vivíamos em união estável, o que nos garantia alguns direitos, como o de abrir contas bancárias conjuntas, mas queríamos nos casar. Em 2011, o STF equiparou a união estável hétero à homoafetiva e foi possível interpretar que ela poderia ser convertida em casamento civil. Seria uma decisão inédita. Nos casamos em 27 de junho de 2011, um dia após a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Lembro quando o oficial do cartório disse que a partir daquele momento ninguém poderia recorrer da nossa união. Mas aquele não foi meu primeiro grito de Independência. Um ano antes, ajudei a organizar a primeira parada LGBT do Vale do Paraíba paulista, em Jacareí. Até então, só falava sobre minha sexualidade se alguém perguntasse. Pois naquele dia, em frente a milhares de pessoas, bradei: ‘Viva Jacareí! Estou aqui pra dizer que sou gay, sou LGBT!’, enquanto balançava a bandeira do arco-íris. Disse quem eu era e que lutaria pelos meus direitos e pelo respeito da sociedade. E a luta pela independência segue. O casamento gay não é lei, é uma decisão da Justiça, a partir da jurisprudência motivada justamente por minha união com Sergio e pela decisão do STF. Precisamos ter mais garantias legais contra a homofobia, e pelo direito de nos casar, para não viver sob o risco de retrocessos. Depois de quatro anos, Sergio e eu nos separamos. Casamentos acabam, faz parte. Mas é importante dizer que um dos direitos que conquistamos foi o de poder nos separar de modo tranquilo, dentro da lei. Utilizamos nossos direitos do começo ao fim".

"O povo Xokleng é um dos que mais sofrem hoje com a falta de demarcação de terras. No dia 3 de abril de 1926 recebemos a doação de 37 mil hectares de terras, mas 26 anos depois o governo vendeu 23 mil destes hectares para fazendeiros. Temos o documento que comprova que a terra foi doada para o povo Xokleng e desde 1997 pedimos na Justiça o levantamento sócio-antropológico do território para comprovação, mas sem sucesso. Dos 14.156 hectares que nos restaram, 80% é de Mata Atlântica e outros 14% são de uma barragem de contenção de cheia, a maior do Brasil, que protege a vida de 1,2 milhão de brasileiros, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Mesmo assim, ainda há quem ache que não servimos pra nada. Somos parte da luta travada no STF pra que o Marco Temporal não seja validado, o que significaria a perda de nossa terra. Se isso acontecer, como iríamos viver? Nós também celebraremos em setembro os 200 anos em que os brasileiros se livraram do colonizador, mas nós, os indígenas, ainda não. É muito triste pensar nisso, pois quanto mais indígenas no Brasil, mais felizes seriam as florestas. Para sobrevivermos, é fundamental demarcar nossas terras e nos garantir o direito de viver em nossas diversas culturas e ancestralidades. Somos mais de 300 povos no Brasil, não somos todos iguais. Talvez amanhã eu não esteja mais aqui para dividir isso com vocês, mas meus filhos e netos seguirão lutando para fazer a sociedade brasileira entender que o indígena também é importante".

Anielle Franco, irmã da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018

"Toda mulher cresce pensando no momento em que poderá dar um grito de independência que seja. O meu primeiro foi financeiro, importante quando se cresce numa família humilde e se entende a importância de cuidar dos pais. Mas também tive outro, muito importante, dado ao sair de um relacionamento abusivo. Vivemos num país que insiste em nos dizer que somos reféns de escolhas majoritariamente feitas por homens. Ainda não podemos escolher onde queremos estar, com quem queremos estar, o que queremos fazer, sem o risco de sofrer algum tipo de violência, em uma sociedade machista e misógina. Sonho com o dia em que a gente vai poder gritar que nós, brasileiras, também conquistamos plenamente a independência. E também sonho com mais liberdade pra viver, sonhar, protagonizar, estar em lugares sem ser ofendida, agredida, sem falarem que você só chegou aonde chegou porque é amiga ou parente de não sei quem. Sonho muito com o dia em que o Brasil valorizará de fato as brasileiras. Em março, comemoramos 90 anos do direito do voto feminino, mas ainda falta tanto para a conquista plena de nossa independência. Por isso, o Instituto Marielle Franco encoraja mulheres a entrar na política, institucional ou não, essencial para este avanço. Nascemos de uma violência política, mas acreditamos ser imprescindível combatê-la, inclusive encorajando mais mulheres a ocuparem estes lugares de decisão".

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