Análise mostra que dezenas de espécies frequentemente caçadas de modo ilegal podem causar mais de 70 doenças. Estados sob influência da Floresta Amazônica estão mais suscetíveis a emergências ocasionadas por essas zoonoses.
Estudo encontrou 63 mamíferos propícios a causar mais de 70 diferentes doenças. Foto mostra colagem com macaco-prego (ao topo, esquerda), cachorro-do-mato (ao topo, direita), gambá (esquerda)e tatu-galinha. — Foto: Moisés Patrício de Souza/IAT/Domínio Público/Wikimedia/Um estudo que teve a participação de pesquisadores da Fiocruz
revelou que ao menos 63 mamíferos encontrados no Brasil estão associados a
parasitas propícios a causar mais de 70 diferentes doenças.
Segundo o artigo, que foi publicado na revista científica
internacional Science Advances e teve o financiamento do CNPq, essas espécies,
que em sua maioria são frequentemente caçadas de modo ilegal no Brasil, têm o
potencial de causar danos graves à saúde pública, caso ocorra o chamado
“transbordamento” (do inglês, spillover), quando infecções de origem animal
passam a ocorrer em outras espécies, incluindo humanos.
Entre as principais espécies citadas na pesquisa estão nomes
conhecidos da população brasileira, como o cachorro-do-mato (ou raposa do
campo), o macaco-prego, o tatu, o gambá (também chamado de timbu), a cutia, o
jaguarundi, o veado-catingueiro, a preguiça-real, o javali, o
sagui-de-tufo-branco, entre outros.
“Para chegar nesse número a gente fez um levantamento de
espécies que são caçadas no território brasileiro e buscamos em base de dados e
na literatura parasitas associados a esses animais”, explica ao g1 Gisele
Winck, autora do artigo e pesquisadora do Laboratório de Biologia e
Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios da Fiocruz.
Winck conta que esses animais têm uma diversidade maior de
parasitas e são caçados por propósitos diferentes, como o tatu, o gambá e o
macaco-prego. "Já a raposa do campo é caçada por uma questão de controle:
as pessoas acham que ela é um potencial predador de galinha", diz.
O estudo ressalta que a expansão das atividades humanas para
regiões de matas e florestas, naturalmente habitadas por esses animais
silvestres, é um aspecto que favorece esse transbordamento.
Por isso, como era de se esperar, embora o risco exista no
país inteiro, estados sob influência da grande biodiversidade da Floresta
Amazônica estão mais suscetíveis a emergências ocasionadas por essas doenças
que são chamadas de zoonoses.
Sagui-de-tufo-branco tem origem da Caatinga e distribui-se em
todo o país.
No estudo, os pesquisadores fizeram um modelo científico para
avaliar o risco de surgimento de zoonoses em cada estado brasileiro, que leva
em conta dados de 20 anos atrás e fatores como vulnerabilidade, exposição e
capacidade de enfrentamento à emergência sanitária.
"A nossa pesquisa é retroativa: são casos de zoonoses
que já aconteceram no nosso país, até 2019", detalha Winck.
Depois da construção do modelo, os pesquisadores
classificaram o nível de risco por estado. O Maranhão por exemplo, que tem
cerca de 34% do seu território coberto pela floresta tropical, foi apontado
como área com alto risco. Já o Ceará, estado vizinho, onde a Caatinga
prevalece, apresenta baixo risco no surgimento de novas doenças.
“A Floresta Amazônica é uma região com alta diversidade de
mamíferos selvagens e que vem sofrendo grande perda da cobertura florestal.
Muitas espécies estão ficando sem habitat devido ao desmatamento, gerando
desequilíbrio na dinâmica local”, explica à agência de notícias da Fiocruz,
Cecília Siliansky, outra autora do artigo.
Um detalhe importante que os pesquisadores ressaltam no
artigo é que há um provável viés de amostragem para espécies mais abundantes,
como o cachorro-do-mato e o macaco-prego, já que esses animais também podem
interagir com mais frequência com humanos, pois essas espécies ocorrem também
em áreas urbanas e parques dentro de cidades.
"E todas essas doenças são preocupantes, mas aquelas que
ainda não conhecemos são mais ainda. Uma boa parte dos parasitas a gente ainda
nem conhece", diz.
Carne de caça e
populações tradicionais
A pesquisadora ressalta ainda que essas infecções podem
ocorrer por diversas etapas, quando humanos adentram florestas e ficam expostos
a patógenos como mosquitos e carrapatos, ou até mesmo no ato da caça, quando
caçadores sofrem cortes ou arranhões que entram em contato com fluidos animais
Outra forma de transmissão é no preparo da carne, quando há o
contato direto com vísceras, que também são comumente oferecidas como alimentos
crus para cães e gatos de estimação; e no consumo final da carne, caso ela não
seja bem armazenada ou cozida.
Como muitas populações tradicionais utilizam carne de caça
para a sua subsistência, a pesquisa destaca também que para prevenir esses
surtos zoonóticos é preciso garantir a segurança sanitária através de políticas
públicas de saúde que estimulem o monitoramento de toda a cadeia produtiva.
"É algo que precisa ser bastante discutido e avaliado. A
caça é autorizada apenas para os povos tradicionais, porém ela continua
ocorrendo fora desses grupos e serve como fator de interação entre pessoas e
animais silvestres reservatórios de patógenos", acrescenta Siliansky.
"Infelizmente, todos acabam sendo tratados erroneamente
como iguais. É preciso diferenciar populações que dependem desse consumo como
fonte de proteína daqueles que atuam no tráfico de animal silvestre ou caça
esportiva”, lembra a pesquisadora.