Primeira-dama publicou vídeo do ex-presidente passando por purificação espiritual com legenda afirmando que ele 'entregou a alma para vencer a eleição'
Por Luísa Marzullo
Religiosos do candomblé e da Igreja Luterana repudiaram uma
postagem feita pela primeira-dama Michelle Bolsonaro nesta terça-feira. A
publicação, originalmente da vereadora de São Paulo Sonaira Fernandes
(Republicanos) e compartilhada pela mulher do presidente Jair Bolsonaro, traz o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, principal adversário do marido nas
eleições, recebendo uma purificação espiritual durante uma cerimônia de
religião de matriz africana. "Lula já entregou sua alma para vencer essa eleição.
Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades
das trevas", dizia um trecho da legenda que acompanhava a gravação.
"Isso pode, né! Eu falar de Deus, não!", escreveu Michelle no
Instagram junto do conteúdo.
Janja rebate Michelle: 'Deus é sinônimo de amor, compaixão e, sobretudo, respeito', afirma a mulher do ex-presidente Lula
Ao GLOBO, cinco importantes lideranças condenaram a atitude
da primeira-dama, classificada como intolerante e vista como um pequeno retrato
diante do racismo religioso sofrido pelos fiéis de religiões africanas e
indígenas, invisibilizadas pelo poder público. O babalaô (no português,
sacerdote) e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa
(CCIR), Ivanir dos Santos, foi um dos problematizar a publicação:
Michelle se usa de um conceito racista de que o que é branco
e europeu é bom e deve ser exaltado. Já o que vem da África, do povo preto, é
do mal. É uma ignorância porque nas tradições africanas há a figura do criador.
Esse Deus dela tem origem no nosso continente — afirmou o Babalaô. A fala foi
endossada por Iyalode Ojéwunmi Rosângela D'Yewa, diretora do Afrikerança
Matriarcado Ancestral do Brasil, que considerou o ato "infeliz".
Na publicação original, a vereadora Sonaira Fernandes já
havia se valido de um discurso semelhante ao da primeira-dama, ao citar uma
suposta falta de liberdade religiosa em relação aos evangélicos. "O
cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje, para não ser proibido
de falar de Jesus amanhã", dizia a postagem. Sobre o tema, a pastora
luterana e secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas (Conic), Romi
Bencke, foi categórica: trata-se de uma "falácia".
A religião cristã no
Brasil nunca foi perseguida. O que aconteceu foi ainda no Brasil imperial,
quando os templos protestantes não eram considerados. Desde a República, são as
expressões de cristianismo que perseguem por serem a hegemonia — explicou a
líder evangélica, que também repudiou o ato de Michelle e Sonaira.
De acordo com uma pesquisa Datafolha de 2020, 81% da
população brasileira é cristã. Por serem a maioria, de acordo com Romi, os
evangélicos não teriam como ser perseguidos. O argumento é reforçado pela
coordenadora nacional da Rede de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (Renafro),
Mãe Nilce Naira. De acordo com a Iyá egbe (em português, mãe da comunidade), o
Renafro tem 52 núcleos e em todos recebe denúncias de intolerância. Sobre a
atitude de Michelle, ela diz ser o reflexo do cotidiano de ataques.
Cada episódio desse vai ferindo o nosso povo, precisamos de
uma resposta efetiva pelos ataques — afirmou Nilce ao GLOBO: Nossa roupa incomoda o outro, nosso adereço
incomoda. O povo está sempre preocupado com o terreiro, mas até agora o governo
nunca se interessou por nós, não temos políticas públicas.
- Veja o vídeo: Michelle Bolsonaro leva evangélicos para orar de madrugada dentro do Palácio do Planalto
atribui a falta de políticas públicas à negação da população
de matrizes africanas como cidadã:
O que é demoníaco não nos pertence, não conhecemos, deve ser
um problema dessas outras tradições, que usam o demônio para alavancar a violência
contra as outras tradições — pontuou.
O governo Bolsonaro em imagens
Janja rebateu ataque: 'Deus é sinônimo de amor'
Horas depois da publicação compartilhada por Michelle Bolsonaro, a socióloga Rosângela da Silva, mulher do ex-presidente Lula e conhecida como Janja, rebateu a fala da primeira-dama. Também pelas redes sociais, e sem citar Michelle diretamente, ela disse que "Deus é sinônimo de amor".
"Eu aprendi que Deus é sinônimo de amor, compaixão e,
sobretudo, de paz e de respeito. Não importa qual a religião e qual o credo. A
minha vida e a do meu marido sempre foram e sempre serão pautadas por esses
princípios", escreveu Janja.
Ainda nesta terça-feira, a Frente Inter-Religiosa Dom Paulo
Evaristo Arns, que congrega representantes de diversas religiões e integrantes
da sociedade civil, também criticou a postagem de Michelle nas redes e pediu
que se retrate "dentro dos princípios do amor ao próximo que afirma
professar". Em nota, a entidade afirmou que as declarações da
primeira-dama ferem o Estado Democrático de Direito, promovem o ódio e ferem a
lei eleitoral.
"Ao atribuir às administrações anteriores uma
'consagração ao demônio', a primeira-dama repete uma antiga prática excludente,
beligerante e preconceituosa que, conforme demonstrado pela história, uma a
divindade para tornar o semelhante um inimigo desumanizado, ligado a forças
nefastas e que podem inclusive ser alvo de violência de forma legitimada",
afirma o documento.